Sociologia do cangaço no “Carcará”

Por Lenilson Oliveira

Não obstante resgatar um dos fatos mais marcantes da história de Cajazeiras (PB), tratando da invasão da cidade por parte de um bando de 25 cangaceiros, chefiados por Sabino Gomes, em 1926, e a reação da população, conseguindo expulsa-los numa batalha heroica, o escritor e ensaísta cajazeirense Ivan Bichara Sobreira, nascido em 1918, leva o leitor a passear pelas ruas e nos apresenta a pessoas das quais as gerações mais recentes já muito ouviram falar, como Dom Moisés Coelho (primeiro bispo da Diocese), Dimas Andriola (escrivão), Padre Gervásio Coelho, professor Hildebrando Leal, Major Epifânio Sobreira, dr. Hygino Rolim e seu filho, o poeta Cristiano Cartaxo, Monsenhor Constantino Cartaxo, João Bichara (padeiro, pai do escritor), dr. Victor Jurema (juiz), Cel. Joaquim Matos (da Usina Santa Cecília), Cel. Galdino Pires, o ex-prefeito Otacílio Jurema (médico) e o professor Antônio de Sousa, que transitam livremente, com muitas das suas características, entre as personagens fictícias, como o ex-cangaceiro Raimundo Anastácio, que, embora não possa, de imediato, ser caracterizado como protagonista, abre e fecha os acontecimentos narrados.

Professor, jurista e político, tendo sido deputado estadual, deputado federal e governador do Estado da Paraíba (1975-78), admirador e estudioso de outros dois grandes escritores regionalistas paraibanos, José Lins do Rego, sobre cujo romance publicou um ensaio em 1978, e de José Américo de Almeida, a quem dedica “Carcará”, Ivan Bichara não poderia deixar de centrar as ações do seu romance na figura de um homem que havia estado do outro lado, isto é, do lado dos cangaceiros e dispusera-se a defender a cidade utilizando-se dos seus conhecimentos sobre os planos e modos de agir dos ex-companheiros. Assim, a figura de Raimundo Anastácio atravessa toda a narrativa, cujos acontecimentos sucedem-se cronologicamente, com a chegada de Sabino Gomes às imediações da cidade, passando pela mobilização da população para combatê-lo e encerrando-se com a batalha de 28 de setembro de 1926.

Narrado em terceira pessoa e com o alerta de que “qualquer semelhança com pessoas da vida real terá sido mera coincidência”, Carcará expõe os acontecimentos que se sucedem até o dia da batalha, da qual, com nove anos, Ivan Bichara ouvira os tiros “embaixo da cama, no meio de outros meninos”, mesclando personagens reais e fictícios, estes últimos construídos a partir de histórias e características próprias.

No melhor estilo dos grandes escritores, além da psicologia das personagens, uma das preocupações do autor foi com a sociologia do tema central do romance: o cangaço, movimento que ganhou força nas primeiras décadas do século XX, sobretudo pela figura lendária de Virgolino Ferreira da Silva, o Lampião, de cujo bando fazia parte Sabino Gomes, invasor de Cajazeiras. Mesmo sem se ater muito à questão, Ivan Bichara tenta situar o leitor, por meio das suas personagens, no que foram aqueles homens e mulheres que optaram pelo cangaceirismo, “filhos da seca”. Esta missão nos parece destinada, ao longo da narrativa, principalmente ao Cego Alexandre, espécie de observador de tudo e de todos, que discorre sobre o tema na feira livre, cercado de curiosos. É o jovem David quem pergunta:

- O cangaceirismo, um dia, terá fim? Era a pobreza da região responsável pela existência do cangaço?

(...)

- De certo modo, sim. Mesmo no sul, na zona rural, ocorre o mesmo fenômeno. No Nordeste, pelo que me foi dado observar, o cangaço passou a ser, de uns tempos para cá, um meio de vida. Entra-se num bando como quem senta praça na Polícia. As secas prolongadas ou repetidas, além de destruírem os laços familiares, geram o desemprego em massa, as retiradas, os famintos, os doentes da fome, os revoltados. Desse meio, saem os assaltantes das estradas e das fazendas e os bandos de cangaceiros.

Podemos perceber que, neste primeiro momento, sem qualquer palavra de aprovação ou desaprovação, os cangaceiros são colocados no mesmo nível dos retirantes das secas que, sem qualquer outra opção, fazem dos assaltos e ataques a fazendas e cidades “um meio de vida”. Quando João Boanova o interpela, o Cego Alexandre aponta outra causa para o aparecimento da figura do cangaceiro, ou seja, as milícias montadas para proteção das terras:

- Onde houver ou quando houver fome, seca, miséria, há de aparecer o bandido?

- Com esse rigor, não. Além das causas próximas, visíveis, há outras, remotas. Na Paraíba, por exemplo, pode-se apontar, nas milícias formadas pelos donos das sesmarias ou seus herdeiros, o aparecimento de chefes e bandoleiros, na medida em que tais milícias iam se extinguindo. (IDEM, pp. 48-49)

Vai ser justamente o ex-cangaceiro Raimundo Anastácio, conversando com o Delegado, referindo-se à dificuldade de recrutamento de novos cangaceiros por parte de Sabino Gomes, já que Lampião havia ficado com a maior parte do bando, por não estarem atravessando um ano de seca, quem reforçará a tese levantada pelo Cego Alexandre:

- Anastácio, você me falou, por alto, quando me narrou sua viagem, que Sabino estava procurando gente nova para compor o grupo, não foi?

- Foi. Quem me disse foi Manoel Serafim, informando que Lampião, quando saiu de Lavras da Mangabeira, levou o grosso dos bandidos. Daí Sabino querer sangue novo. Mais: que a coisa não corria com facilidade. Se fosse ano de seca...

- Como assim, Raimundo? Que tem a seca com o caso?

- Tem muito. O ano não foi ruim. Deu bom milho, feijão e um pouco de algodão. Quer dizer, o pessoal está ocupado e tem o que comer. O cangaço é a saída desesperada depois de dois anos ou mais de seca repetida.

O dilema do herói e do anti-herói na figura de Lampião também foi maestralmente colocado pelo romancista, considerando, não somente a idolatria do povo por ele pelas razões sociais que o levaram ao cangaço, mas pela “proteção” do Padre Cícero e dos santos de sua devoção, conotando a forte religiosidade que sempre marcou a sociedade sertaneja. É o Cego Alexandre, no seu papel de observador social, como já vimos, quem diz ao Delegado:

- O senhor me desculpe, Tenente. Tenho horror a esse homem tanto quanto o senhor; mas a verdade é que ele não infunde terror, somente; ele provoca respeito e admiração. Para muita gente, para os sertanejos pobres, ele é um herói; um herói que saiu do meio deles, que está no cangaço para vingar a morte do pai; não é um bandido, é uma vítima, o perseguido pelas polícias de seis Estados, mas delas escapando, ileso, porque é um protegido do Padre Cícero, de Nossa Senhora, dos Anjos e Santos que traz dependurados no pescoço em forma de medalhas, bentinhos, escapulários e orações.

Mais adiante, o narrador nos apresenta melhor Sabino Gomes, homem violento que, dirigindo-se com os seus comparsas para o ataque à cidade, tenta assumir a postura de Lampião para se impor perante o grupo:

Sabino Gomes não relaxava a atitude reta, dura, em cima do cavalo que era o maior e o melhor do grupo. Era assim que se portava Lampião. Era assim que ele tinha que fazer, para se impor como o chefe, de quem ninguém tinha coragem de pensar em desobedecer. Olhava, de soslaio, os seus cabras. Na maioria, moços de 20 anos, mas a vida difícil do cangaço os tinha feito velhos, amargos, insensíveis às dores alheias. Assim era esse duro ofício de matar, de viver fugindo, de ter como rede o chão e como teto o céu estrelado e distante. Tendo completado 26 anos, era um dos mais velhos do grupo. No seu íntimo se alternavam as emoções mais descontroladas: o açodamento, a animação pela conquista da cidade, o saque, a festa, a volta do vencedor; e, logo depois, com o mesmo ímpeto, o receio do desconhecido, o pulo no escuro, o medo do fracasso. Não pensava em morrer, ser baleado, nada disso; seu receio era ser desmoralizado no primeiro assalto que comandava.

Diante disso e de tantos outros pontos do romance bichariano que, certamente, merecem um maior aprofundamento, podemos colocar “Carcará” como obra fundamental para lançar luzes sobre o chamado cangaço dos sertões nordestinos e imprescindível na mesa de pesquisadores e historiadores desse fenômeno social do Brasil ocorrido entre o final do século XIX e início do XX e do qual Cajazeiras também experimentou.

(*) Membro da Academia Cajazeirense de Artes e Letras - Acal

Lenilson Oliveira
Enviado por Lenilson Oliveira em 21/06/2009
Reeditado em 09/06/2024
Código do texto: T1660131
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