A poesia de Marly e de Cecília
Por Lenilson Oliveira*
Quando o espelho contemplo,
o espelho se despedaça:
por ver como passa o tempo
e o meu desgosto não passa.
Amargo campo da vida
quem te semeou com dureza,
mas os que não se matam de ira
morrem de pura tristeza?
O fragmento acima é da poetisa Cecília Meireles (1901-1964), mas bem poderia ser de Marly Costa, contemporânea, que como a primeira constrói um universo imagético próprio, com o poder de trazer o leitor para dentro dele com versos intimistas e que fazem refletir sobre o papel do homem e das suas abstrações, como amor, solidão, buscas, perdas... redundando quase sempre na dor concreta ou na dor abstrata, inerentes ao ser humano:
Remenda meu amor rasgado,
Cura essa dor sem fim
Escuta as palavras não ditas,
Refaz os caminhos perdidos,
Ouve todos os meus lamentos,
Estanca a poesia que escorre em mim,
Olha pra mim, estou aqui.
Espero meu amor, inteiro,
Saro de toda a dor,
Nem terei palavras a dizer,
Voltarei pelo mesmo caminho,
Sem me lamentar...
Mas, sem a poesia a me ter...
Procurarás, onde estou?
Morri.
O poema acima (Pedido) é de Marly Costa, mas bem poderia ser de Cecília Meireles, de quem a primeira deve ser leitora. Não que por ser leitora de Cecília, Marly tenha absorvido a sua poética como modelo, mas, certamente, como inspiração. Pode até ser que Marly nunca tenha lido Cecília, o que seria improvável, porém o diálogo entre a poesia de ambas é palpável, como exatamente elas fazem com as abstrações poéticas. O leitor se transporta para dentro da lírica intimista de ambas e de tantos outros poetas pós-45. Como disse Bosi, com esses poetas “a vertente intimista (...) afina-se ao extremo e toca os limites da música abstrata”. Não à toa, leiamos esses versos de Marly Costa, dialogando com Mozart:
Acordo com a sinfonia 40 de Mozart.
Viajo em suas notas, vario em seus agudos.
Seus graves me afogam, me afagam,
Respiro sons misturados com luz
Numa simbiose de amor e mística.
Transporto-me, adormeço...
Sigo as trilhas ordenadas pelo compositor,
Embrenho-me em seus desvarios,
Faço parte de sua sinfonia
Um piano timbra, violinos plangem, tudo segue
E, minha cumplicidade com Mozart, cresce.
Irmanamo-nos nos sons,
Sofremos com suas notas
Choramos com seus oboés e violinos.
Sua melodia entra em mim,
No meu peito, faz morada,
Numa dor sem fim que vai do real ao imaginário
Choro, choro por mim e por ele,
Ambos desarmados e irmanados na música.
Sua sinfonia vai e volta, volta e vai.
Faz e desfaz e me inebria.
Como não sentir, sofrer, amar,
Como não, Mozart?
Percebamos que eu lírico fala de uma dor que vai “do real ao imaginário”: ele não se basta com a dor física, precisa transcender para o abstrato da melodia mozartiana que entra e faz morada no peito. O simulacro pós-moderno que segundo Santos “fabrica um hiper-real, espetacular, um real mais real e mais interessante que a própria realidade” (p. 12), permeia a poética marlyana. Senão, vejamos: quantos poemas cantando o por do sol nós já não lemos, seja de poetas consagrados ou “de gaveta”? Leiamos:
Dezembro chegou, eu em pleno carnaval,
Meu tempo se foi, sem o ter vivido,
Mas, o girassol anunciou meu final.
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha,
Engoli minha fome e sede de infinito,
Esperei um cavaleiro que não vinha,
Perdi a estrada, avancei além do sentido.
Sem ninho, sem rumo, andei, andei,
Em busca de vida, me desequilibrei,
E, por querer viver além do amor,
Acabei sofrendo além da dor.
Em nenhum momento, o concreto sol aparece no texto, a não ser no título: “O sol se pôs e eu nem tinha amanhecido”. A construção da imagem do ocaso começa com “Dezembro chegou...” E que imagens trazem para o leitor o signo “dezembro”? Fim e recomeço ao mesmo tempo. Perda e busca. Passado e futuro. Como artífice da palavra, Marly Costa acha pouco o simbolismo impregnado na sua poética e ainda cria “O oleiro”:
Bendito seja o ser que outro desperta,
Divino o ser que outro molda,
Abençoado o ser que outro resgata,
Sublime o ser que outro arremata,
E, no despertar, no moldar,
No resgatar, no arrematar,
Diviniza-se, sublima-se
Arremata-se e é abençoado.
Utilizando-se de verbos fortes, como despertar, moldar, resgatar, arrematar, sublimar e abençoar, o poema é a imagem da construção do perfil de um homem por um oleiro, tijolo a tijolo.
(*) Especialista em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira