viagem
faz-se silêncio. digiro a tua viagem neste dias que até me trazem calma. por vezes fecho os olhos e vejo-te. naquela caixa de madeira a descer para a terra. outras na cama do hospital. outras ainda recuo e reconheço-te na minha meninice, de quando as recordações são mais felizes, mais nossas. lembro-me que deixei de te conhecer um dia. não sei qual. também não deve ter qualquer importância. mas eu sei que me amaste. à tua maneira. no teu jeito de rejeitar as oportunidades únicas da vida. mas que importa isso agora? os homens que admiro têm todos mau feitio. e aqui eu errei. porque a esses eu tento entender, entrar no seu mundo e ver. falo de um virgílio ferreira ou de um miguel sousa tavares. e afinal, eu devo ter o mesmo jeito incompreendido. talvez seja parecida contigo. talvez aceite que o seja. talvez tu não tenhas sido sempre assim. e tenhas criado uma fortaleza em torno de ti. desculpa, mas às vezes só quando alguém faz uma viagem grande é que nos apercebemos destes pormenores. só espero que estejas bem. às tantas estás sentado ao meu lado a observar estas minhas idiotices ou lamechices. nós somos mais do que aquele corpo que desce à terra. estás vivo em ti e ninguém se apercebe. és muito maior. agora.
nestes dias senti frio. vestia o casaco. tirava o casaco. senti a tua presença naquela casa que já não é casa. vê só onde eu cheguei. mas não te preocupes, muita gente recomeça do zero e sobrevive. assim fortaleço o que de melhor e único há em mim. e agora descansa. falamos noutra altura. dói-me a mão de segurar o caderno. e tenho os olhos pesados.