OS DEZ MANDAMENTOS DE DEUS . In: Revista de Estudos Bíblicos: a lei. Petrópolis – RJ: Editora Vozes, 1996, nº 51.
TEXTO: OS DEZ MANDAMENTOS DE DEUS . In: Revista de Estudos Bíblicos: a lei. Petrópolis – RJ: Editora Vozes, 1996, nº 51.
AUTOR: GERSTENBERGER, Erhard.
Número de páginas: 15 – 8-22.
O autor aborda os dez mandamentos e os coteja com sua formulação originária no âmbito da organização social hebraico-judia histórica, considerando a posterior centralidade de seu papel e significado assumido no decorrer da História da Igreja Católica.
A fundamentação teórica está assentada na tradição bíblica, que versa sobre as revelações do Sinai – Ex. 19 a Nm 10. Tal tradição, construída por varias gerações de escribas e comunidades, foi canonizada na época pós-exílica e revela-se muito complexa. O trabalho daqueles que trataram de organizar esse conjunto normativo esteve focado na concisão de um texto definitivo.
Depois de argumentar e fazer a exegese daqueles textos, o autor afirma que esse único decálogo é inexistente na forma que o conhecemos. Concretamente, temos uma série de textos no Pentateuco, que foram trabalhados e reconhecidos pela tradição como sendo determinações provindas de Deus. Contar os mandamentos nos dedos da mão é um ótimo recurso didático, que não fora considerado, originalmente,no conjunto normativo de Israel.
Jesus, em seus discursos - tanto naquele da montanha como em debates com fariseus, saduceus e escribas -, faz referência à torá integral e não menciona o número de dez mandamentos”. E também apresenta sua própria versão concisa da torá, em Lc 10,27, Mc 12,28 e Mt 22,36, onde a ilustra com a parábola do bom samaritano. Por sua vez, os apóstolos e evangelistas da Igreja primitiva trataram a torá com referência à necessidade e oportunidade de seu momento. Para tanto, valeram-se da ética greco-romana.
Na Idade Média foi privilegiado o ensino de Ex. 2- e Dt. 5 – inclusive por facilitar o inventário de transgressões para o penitente em confissão -, com exclusão dos demais textos legais e cultuais, inclusive aqueles que compõem a torá. Essa a forma em que foi passado para as igrejas protestantes, no começo da Idade Moderna.
Ao tratar das origens dos mandamentos, o autor alerta para o fato de que a vantagem pedagógica da síntese adotada pelo Cristianismo abriu brechas para o legalismo autoritário, com exclusão de regras relevantes.
Os mandamentos – que não são propriamente leis –, quando tomados como normas legais, são traduzidos em regras, tanto positivas quanto negativas, para a boa convivência social a partir da experiência de ocorrências indesejáveis. O autor estabelece a diferença entre leis e mandamentos;as primeiras, casuísticas, e os segundos, embora baseados em experiências, são direcionados a evitar que situações tendentes a perturbar a ordem viessem a ocorrer. As leis estão dirigidas à responsabilidade social e os mandamentos ao indivíduo, pois dependem da vontade individual – ambos devem ser aceitos pela sociedade como um todo.
Ao considerar os mandamentos como uma medida para preservar a integridade da cultura e religião do povo no exílio e pós-exílio, ele defende que é preciso fazer o levantamento daquelas normas de que deriva a a tal síntese, originárias de grupos empenhados na excelência da convivência social e prática eclesial.
Lv, 19 tem a conformação de um conjunto heterogêneo de normas sacerdotais, civis e familiares, orientadas à catequização e santificação das comunidades oprimidas por babilônicos e persas. Tratando da responsabilidade individual, Ez 18 também apresenta essa conformação heterogênea. Em Jô, 31 prevalecem normas de caridade e solidariedade sociais, que abordam apenas ligeiramente a questão religiosa. Há contextos que produziram apenas normas inter-pessoais para convivência social e comunitária – Sl 15 e 24; Is 33, 13-16. Em todos esses casos prevalecem as normas de comportamento para convivência e integração comunitária. Há, no entanto, normas reunidas em conjuntos orientados para o culto, a provisão do templo, as festividades e assembléias (Ex 23, 10-19; 34, 18-26; Lv 23; Dt 16; Ne 10. 31-39). A partir dessa fundamentação teórica, o autor projeta a demonstração de que o legislador tardio teria elaborado suas composições com fundamento em contextos diferenciados, com vistas a atender a emergências, conforme as situações se iam apresentando.
As normas sociais provieram do âmbito familiar, do clã, da aldeia, de pequenas comunidades que conviviam intimamente e demandavam normatização concernente a trabalho diário, ritos e festividades em comum, relacionamento interpressoal, sexual (Lv 18, 6-16) e propriedade particular (Ex 20, 17; Dt 5, 21). Trata-se do direito natural. Diante das exigências das comunidades em convívio eclesial, a esfera se dilata para regras capazes de regular o comportamento referente aos outros, que não os parentes (Lv 19, 14.17-18). Nessa linha ascendente, chega-se ao âmbito da justiça local (Lv 19,15; Ex 23,1-9). Verificamos aí uma linguagem de conotação didática, bastante perceptível em Pr 1,8: 22, 22.
No Antigo Oriente Médio, os códigos legais elaborados por escribas não ostentam aquela características de instrução. Assim que aquelas normas, originalmente comunitárias, sofreram a influência daquele estilo regional quando de sua compilação tardia pelos escribas. Essa variação estilística é notável em Êxodo, Levítico e Deuteronômio.
As normas cultuais também obedeceram a esse desenvolvimento processado entre a centralização do culto no âmbito familiar, especialmente na era patriarcal, mais adiante, na época dos juízes, deslocado para os santuários. A normatização cultual atendia a pais e mães de família, a quem cabia a condução dos cultos domésticos e comunitários (Ex 23, 18.19). Mais tarde, a rota do desenvolvimento cultual atingirá a esfera tribal, festas nacionais (Ex. 23; 34; Dt 16; Lv 23) e a centralização no templo. Na dispersão, a demanda normativa foi orientada pelas necessidades da sinagoga, com ausência de sacrifícios de sangue (Ex 20; Dt. 5). Então, o povo inteiro deveria ser santificado, não apenas a casta sacerdotal (Ez 18, Lv 19 e 21). O autor afirma que não houve, apesar da afirmação em Ex 34, 4-28; Dt 4, 1s; 5,1s; Jr 6,16; Mq 6,8, aquela tábua única de dez mandamentos de origem divina. A realidade aponta para conjuntos legais heterogêneos, todos com o mesmo status religioso de transmissão divina, conforme entendimento antigo no âmbito judaico e cristão. Tais conjuntos legais desempenharam importante papel na formação da mentalidade e ética ocidental. O autor nos convida a respeitar a tradição legal para dela extrair o que mais necessitamos na contemporaneidade. Para realizar a necessária atualização da tradição, é preciso abrir mão da comodidade proporcionada pela certeza das dez palavras imutáveis saídas da boca de Deus; ele defende o uso de nossa inteligência para refletir e debater as graves questões que nos afligem na atualidade, ancoradas, em especial, no antropocentismo exagerado. Como as transformações estão ocorrendo com vertiginosa rapidez, é necessário estudar saídas. Caso contrário, agrava-se o risco de extinção da vida no Planeta. Trata-se de um trabalho a ser realizado por todos; mas, cuja responsabilidade recai, preferencialmente, sobre as igrejas, comunidades eclesiais, meios teológicos e acadêmicos.
O autor aponta duas linhas básicas do Antigo Testamento: cuidado com a dignidade dos fracos e santidade de Deus a ser experimentada por seu povo. O antigo desejo de justiça e dignidade continua presente no atual contexto da sociedade industrializada, individualista e globalizada, assolada por esquemas de opressão e dominação. Urge buscar a necessária adequação ético-religiosa, com base nas duas áreas fundamentais de comportamento: a privada e a pública.
A insistência das igrejas cristãs na redução das unidades de convivência íntima ao âmbito da família atomizada se torna inadequada devido a que os espaços de convivência íntima entre homens e mulheres extrapolam o núcleo familiar. As regras patriarcais estão em desuso, as relações exigem um padrão igualitário para os gêneros.
O autor enfatiza a autonomia da mulher, que demanda o reconhecimento do direito ao livre exercício da sexualidade, até há pouco exclusivo do homem. A proposta vai no sentido de privatizar a sexualidade, com restrição da responsabilidade sexual frente ao parceiro e a Deus. A regulamentação ética recairia então sobre os abusos, mesmo dentro do casamento. Ele diz, textualmente, que a sexualidade demonizada, principalmente pela tradição cristã, “deve ser reconhecida, em nossos tempos, como pura dádiva e beneficio aos seres vivos e às pessoas humanas, uma parte integral da personalidade”. E que “não tem aquela grande importância cultual e religiosa que nossos antepassados assumiram diante das condições vigentes da sua própria época”.
Quanto à esfera pública, está caracterizada, principalmente, pela anonimidade e pela burocracia, como forma de inter-comunicação. A sociedade se organiza em unidades estatais, grupos étnicos, de interesse, profissão ou lazer, onde o individuo assume papéis sociais. Com frequência, tal conformação dá lugar a fanatismos inerentes à fixação de identidade, fanatismos estes de ordem nacional, religiosa e até esportiva. Diante disso, o alvo da regulamentação ética converge para a responsabilidade comum sem, no entanto, negligenciar a responsabilidade individual, com vistas a um alcance global. O limite é a própria humanidade. Esse novo universalismo não deixa de ter suas raízes naquele que germinou nas tradições monoteístas judaico-cristãs. O fundamento ético deve estar assentado sobre o tema da ecologia; a exigência maior deve ser dirigida aos países industrializados. Para alcançar sucesso nessa empreitada, é preciso desmontar o mito do antropocentrismo e da super-valorização da economia e da técnica.
O autor finaliza propondo um novo decálogo:
1. Não absolutizar o grupo ao qual se pertence; só Deus é absoluto.
2. Respeitar a diversidade humana.
3. Desmontar a cosmovisão antropocêntrica.
4. Não instrumentalizar a natureza.
5. Respeitar, individual e coletivamente, a natureza.
6. Promover a paz.
7. Não prestar culto ao economicismo.
8. Promover o ecumenismo e diálogo interreligioso.
9. Não idolatrar sistemas de poder.
10. Não delegar às lideranças as responsabilidades pessoais.
Gerstenberger articula informações - sobretudo exegéticas e ético-religiosas - da maior relevância, que resultam na provocação de uma discussão urgente nos meios religiosos, entre outros. No entanto, no afã de prestar um grande serviço ao desenvolvimento do debate religioso e da atualização de modelos eclesiais, cujo discurso está eivado de anacronismos elementais, ele cai na repetida negligência tão em voga, que consiste na banalização da sexualidade; isso termina por reforçar a postura atual de uma sociedade centrada na lógica do mercado, que esvazia a sacralidade e complexidade da experiência sexual humana, que inclui afetividade e romantismo. A objetivação da sexualidade - em forma de privatização despojada de seu viés social e dimensão afetiva - pode vir a ser tão nociva e embrutecedora quanto o antropocentrismo, que o autor critica enfaticamente.
Golemann, estudioso da inteligência emocional, faz menção às pesquisas sobre a assustadora depressão infanto-juvenil. As conclusões apontam para o fato de que tal estado acomete os jovens devido à perturbadora avalanche de estímulos eróticos a que são expostos, combinados com as inatingíveis exigências dos padrões estéticos impostos pela mídia. Isso acaba por reduzir suas aspirações afetivas a mero movimento de hormônios.
A proposta do autor relega a violência sexual à sanção criminal, eminentemente casuística. A tradição religiosa ocidental integra a sexualidade à esfera dos mandamentos divinos e, desta forma, pretende humanizá-la e protegê-la de perturbações. A sociedade ocidental moderna não sabe o que fazer com aqueles, cujos desvios sexuais, escandalizam a sociedade, a despeito da permissividade promovida pela revolução sexual da década de 60. Para conter os abusos, ao que parece, não é apenas necessário punir - e como alguns desejam, com a pena de morte - os desviados. Defendemos ser necessário o respeito à sexualidade para livrá-la da condição de objeto de mercado, preservando os mais fracos dos efeitos nefastos da pornografia - que pode viciar os menos preparados ao impor ao sexo a condição de mera droga, com seus efeitos de adição.
A afirmação do autor de que a tradição cristã teme o sexo - como se essa tradição fosse um caso a parte no panorama da religiosidade - carece de fundamento histórico e antropológico. O budismo destina aqueles que praticam não só sodomia, como felação e masturbação, a um de seus infernos e assim desce a detalhes inexistentes na tradição judaico-cristã. No paganismo há prescrições de pureza sexual para aqueles que devem conduzir rituais mágicos ou religiosos. Portanto, as prevenções sexuais são universais e não se restringem ao cristianismo ocidental.
Os adolescentes do sexo masculino de hoje, em seus jogos sexuais, apostam quem vai agarrar mais parceiros (ou vítimas?), como veiculado no programa da Rede Globo, o Fantástico. Neste caso, a sexualidade seria exercida como uma forma de poder. Assim poderia prover benefícios para aqueles que a exercem privadamente?
Por outro lado, no âmbito da Igreja, verifica-se a persistência do silêncio e superficialidade nas abordagens à sexualidade. Cardeais condenam o homossexualismo como motivo dos casos de pedofilia ocorridos no meio clerical. Autoridades eclesiais ignoram dados objetivos das pesquisas de comportamento que revelam, indubitavelmente, que o fenômeno da pedofilia ocorre, em índice significativo, dentro das famílias, inclusive envolvendo pais e filhas: ou seja, nem o homossexualismo ou a castidade são fatores determinantes da incidência do desvio comportamental da pedofilia.
Fica então aqui o meu lamento no que se refere à omissão do autor no tocante à regulamentação da sexualidade, que está ausente no novo decálogo proposto pelo autor. Finalizo indagando: como o debate religioso poderá colaborar para que a sexualidade seja “reconhecida, em nossos tempos, como pura dádiva e beneficio aos seres vivos e às pessoas humanas, uma parte integral da personalidade” se esta não é mais considerada como tendo “aquela grande importância cultual e religiosa que nossos antepassados assumiram”? E, se aquela importância da sexualidade, assumida por nossos antepassados “diante das condições vigentes da sua própria época”, for banida daquela proposta de renovação ético-moral, poderá a mesma sexualidade ser “parte integral de nossa personalidade” de filhos de Deus?
Não se trata de nostalgia moralizante. Trata-se da necessidade de atender à demanda inerente à essência humana, em seu ponto de união ao reino animal - portanto também relevante faceta ecológica e universal -, que extrapola a esfera privada. É preciso vencer o puritanismo e debater, urgentemente, inadiavelmente, sobre a sexualidade como “dádiva” de Deus e objeto de atualização da regulamentação ética proposta pelo autor.