OS GIRASSÓIS CEGOS, de Alberto Méndez
A memória da maioria dos brasileiros relacionada às guerras históricas não é lá grande coisa. Lembra-se das duas Grandes Mundiais, das recentes e divulgadas na mídia, como a do Golfo e a do Vietnã, algumas estudadas na escola, como a Civil Americana, a do Paraguai, a de Canudos e, fora outras poucas a mais, não saberá muito sobre outras que não só influenciaram e transformaram locais, épocas e pessoas, mas também culturas e modos de pensar completamente. Uma destas foi a Guerra Civil Espanhola, ocorrida entre 1936 e 1939.
Historiadores acreditam, inclusive, que ela foi o estopim para a Segunda Guerra Mundial, pois não só os espanhóis, republicanos e franquistas (nacionalistas), combatiam entre si, mas tinham apoio com armas, soldados e estratégias militares da Alemanha, Itália, Portugal, Irlanda, Vaticano e URSS. Intelectuais se engajaram na luta ao lado dos republicanos, como Ernest Hemingway, George Orwell e Saint-Exupéry, entre outros. Apesar disso, venceu o Movimento Nacional do general Francisco Franco, mas perderam todos os espanhóis: mais de 400 mil mortos (ou 2 milhões pelos cálculos mais pessimistas), e mais da metade das residências, lavouras e criações foram destruídas, havendo uma queda na economia que duraria décadas. Mas, um lado da guerra que não é muito mostrado, apesar de estar lá, é o dos que não estão nos campos de batalha: a dona de casa, o poeta, o intelectual, o padre, a criança, e que refletem até hoje no inconsciente espanhol. Foi isso que o escritor Alberto Méndez (1941-2004) procurou resgatar no livro Os Girassóis Cegos.
Talvez você, como um leitor seletivo, não goste de guerra, talvez prefira ler sobre algo mais próximo no tempo e no espaço, algo que fale sobe o Brasil neste final de 2008, algo que fale sobre a sua vida. Pois esta é a principal vantagem da boa literatura: ela é universal e atemporal. Os Girassóis Cegos é exatamente esse tipo de literatura. Basicamente, o livro traz 4 contos, com personagens diferentes, mas que se entrelaçam no mesmo ideal: passar a sensação ao leitor do desespero frente à algo brutal, algo que vemos em qualquer lugar. O livro consegue desenterrar o desespero, a melancolia, a desesperança que marcaram gerações. O próprio autor comentou que o personagem principal é a derrota. Quem ler o livro verá que Méndez foi modesto na sua afirmação. São vários protagonistas, entre eles a solidão, a paixão, a amizade e a cumplicidade. Todos velhos conhecidos dos leitores brasileiros, bem como os de qualquer país.
Cada conto possui dois títulos. O primeiro conto se chama “A primeira derrota: 1939 ou Se o coração pensasse, deixaria de bater”. Conta a história do capitão Carlos Alegria, que, integrando as tropas que estão prestes a vencer a guerra, ao saber disso, rende-se aos inimigos. Vira um vencido entre os vencidos. Mas quem em sã consciência faria uma idiotice dessas? Talvez as pistas sutis no conto revelem: ele passou alguns dias enterrado em uma cova pública e saiu com vida, foi maltratado pelos que recusavam dar-lhe água e pão e tratar das suas feridas porque estava maltrapilho em suas portas, e saiu gratuita e deliberadamente de uma posição superior, vitoriosa, para sofrer entre os desgraçados, sendo maltratado por e com estes. Não é difícil ver a semelhança do capitão Alegria com outro personagem histórico mais famoso do que ele. Mas o seu fim definitivo só é revelado no terceiro conto do livro.
Em “A segunda derrota: 1940 ou Manuscrito encontrado no esquecimento”, é encontrado um diário em uma cabana abandonada, ao lado de dois esqueletos, um adulto e um bebê. O diário narra a tragédia que houve ali. A história começa tensa e o desespero aflora em conta-gotas até transbordar toda a alma do leitor. Nunca a morte foi aguardada de uma maneira tão dolorosa e esperançosa. As páginas datadas, as descrições do que havia em cada folha além das palavras tornam a narrativa dramática muito mais vívida.
“A terceira derrota: 1941 ou O idioma dos mortos” traz a história de um condenado que tem a pena de morte adiada por contar uma mentira ao seu executor, o coronel Eymar. Por que uma mentira que cura uma ferida é melhor aceita? O coronel sabe que é mentira, então, quem estaria enganando a quem? “Quando alguma coisa é inexplicável, aventurar uma razão plausível é o mesmo que mentir, porque os que precisam administrar verdades costumam chamar a confusão de mentira” (pg. 67). A rotina dos presos aguardando a morte enquanto ela insiste em transformar a espera em tortura é alongada até que não restar mais nenhuma forma de esperança. Ou, a esperança passa a ser fatiada em dias, em horas, em gestos, para ser usada temporariamente como uma manta contra a gélida e sombria desilusão.
O último conto, “A quarta derrota: 1942 ou Os girassóis cegos”, ganhou o prêmio Setenil de contos e, postumamente, o Prêmio Nacional de Narrativa e o da Crítica. É o conto que dá nome ao livro e consiste em 3 narrações simultâneas, uma carta (escrita em itálico), uma lembrança (em negrito) e a história que une as duas anteriores, girando ao redor das relações entre um padre, um menino e os seus pais. Os sentimentos, desejos e medos de um personagem dissimulado e/ou mal interpretado em uma narrativa, fica evidente em outra, dando o efeito literário do leitor conseguir captar enganos e intenções ocultas. Um destaque especial fica com a virtuosa cena de sexo entre o casal, altamente poética e nem um pouco vulgar. Neste conto tríplice que o título “girassóis cegos” é explicado, embora através da reflexão se consiga chegar até a sua interpretação. Em 2008, o conto virou filme com direção de José Luiz Cuerda e provavelmente será o concorrente espanhol ao Oscar de melhor filme estrangeiro, sendo um grande candidato a ganhador, se transmitir na tela as mesmas sensações que conseguiu nas páginas.
Esqueça se a capa do livro foi produzida por um webdesigner com cores berrantes para chamar a atenção. Esqueça que o livro no Brasil foi publicado por uma editora desconhecida, sem ter divulgação na mídia. Esqueça se há alguns “equívocos de tradução” e “erros de revisão”. Esqueça que o autor imitou o estilo de outros escritores. Esqueça que o assunto é sobre outro país e outra época, e que o livro já vendeu mais de 120.000 exemplares no mundo todo. Esqueça tudo isso. Você só precisa lembrar que é um livro vai mexer contigo, entregando você em casa diferente de quando partiu. E tem mais, além de ser recomendado para os leitores exigentes, é uma ótima fonte de idéias para os escritores, praticamente uma aula literária e lingüística.
Méndez usou personagens reais mesclados com a ficção literária. Ele admitiu que são histórias que ele ouviu desde criança (ele nasceu em 1941) de seus pais e tios e amigos da família, e as adquiriu como uma memória por osmose. Alberto Méndez trabalhou como editor durante muitos anos e, infelizmente, escreveu só este livro, pois veio a falecer em 2004 de câncer. Ao morrer, deixou um romance incompleto, que se passava na Espanha socialista. Mas deixou uma obra-prima pela qual será lembrado por décadas. É descrito como “Lector tenaz y exigente, escritor inteligente y sensible, con un respeto inusual hacia las palabras y los rigores del lenguaje”. Ele consegue juntar história, estilo literário, dramaticidade e originalidade em doses certas, aquelas que viciam o leitor já no primeiro parágrafo. Melhor para ele, que será lembrado como um grande escritor, pior para nós, os que tiveram a sorte de se apaixonar pelas suas palavras.
(texto originalmente publicado em 13/12/2008 no blogue www.jefferson.blog.br)