Análise dos poemas: Os Cortejos (Mário de Andrade) e Poemas de Sete Faces (Carlos Drummond de Andrade)

*Ana Karine Bittencourt Coutinho Andrade

Eridan de Santana Costa

Análise dos poemas: Os Cortejos (Mário de Andrade) e Poemas de Sete Faces (Carlos Drummond de Andrade)

Os cortejos

(Mário de Andrade, IN: Paulicéia Desvairada)

Monotonias das minhas retinas...

Serpentinas de entes frementes a se desenrolar...

Todos os sempres das minhas visões! “Bom giorno, caro.”

Horríveis as cidades!

Vaidades e mais vaidades...

Nada de asas! Nada de poesia! Nada de alegria!

Paulicéia – a grande boca de mil dentes;

e os jorros dentre a língua trissulca

de pus e de mais pus de distinção...

Giram homens fracos, baixos, magros...

Serpentinas de entes frementes a se desenrolar...

Estes homens de São Paulo,

Todos iguais e desiguais,

Quando vivem dentro dos meus olhos tão ricos,

Parecem-me uns macacos, uns macacos.

Paulicéia Desvairada foi o primeiro livro de poemas modernistas. Esta obra não possui um roteiro e tem a cidade de São Paulo e tudo o que a ela é inerente, como temática.

Todos os procedimentos poéticos e audaciosos foram expostos e reunidos pela primeira vez em uma poesia sintética, fragmentária, urbana e anti-romântica. Foi o marco inicial à independência cultural da metrópole contra o atraso do resto do país.

A rápida urbanização da cidade paulistana proporcionou a Mário uma percepção poética de como escrever em português e de maneira conforme a realidade local. A liberdade estética e formal transformou-se na marca registrada de sua poesia. O autor adota o verso livre e emprega o discurso fragmentado.

Não mais supondo acerca dos elementos que precederam a criação poética, vale observar que o poema “Os cortejos”, transcreve um pouco essa “música da desordem”, a qual apresenta uma considerável multiplicidade de sons, sendo esta, denominada pelo poeta como polifonia poética:

Monotonias das minhas retinas...

Serpentinas de entes frementes a se desenrolar...

A cidade é vista como um amontoado de cortejos, que podem ser tanto carnavalescos (serpentinas), quanto fúnebres (monotonias).

Mário já percebia a caducidade da cidade e vislumbrava ao que ela estava condenada;

Horríveis as cidades!

Vaidades e mais vaidades...

Nada de asas! Nada de poesia! Nada de alegria!

Paulicéia – a grande boca de mil dentes;

e os jorros dentre a língua trissulca

de pus e de mais pus de distinção...

Giram homens fracos, baixos, magros...

Serpentinas de entes frementes a se desenrolar...

São Paulo se revela uma boca de mil dentes, uma língua trissulca, que morde e mastiga os homens fracos, baixos, magros. Estes são todos iguais (homens enquanto ser) e desiguais (desigualdade de classes), assim como os cortejos podem variar conforme o ângulo de quem os observa. Na visão do peta os homens parecem-lhe seres não-civilizados, ignorantes, preconceituosos; eles parecem

...uns macacos, uns macacos.

Se a cidade a moderna representaria, por um lado, a libertação e a afirmação do indivíduo, a qual não se daria num quadro de uma vida provinciana, por outro ela poderia achatar e tirar a singularidade desse mesmo indivíduo, inserido na divisão do trabalho e sujeito ao poder avassalador do dinheiro e do comércio. Se os homens parecem desiguais ao poeta, com características étnicas, sociais e culturais que os distinguem entre si, são também iguais e anônimos no aglomerado urbano e no mundo do trabalho. Tais homens são menos que homens, pois parecem agir meramente por reflexos condicionados.

Poema de Sete Faces

(Carlos Drummond de Andrade, IN: Alguma poesia)

Quando nasci, um anjo torto

desses que vivem na sombra

disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens

que correm atrás de mulheres.

A tarde talvez fosse azul,

não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:

pernas brancas pretas amarelas.

Para que tanta perna meu deus,

pergunta meu coração.

Porém meus olhos

não perguntam nada.

O homem atrás do bigode

é sério, simples e forte.

Quase não conversa.

Tem poucos, raros amigos

o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste

se sabias que eu não era Deus,

se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,

se eu me chamasse Raimundo

seria uma rima, não seria uma solução.

Mundo mundo vasto mundo,

mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer

mas essa lua

mas esse conhaque

botam a gente comovido como o diabo.

Drummond, em Alguma poesia, combate a tradição e evidencia a adoção de verso livre e da linguagem coloquial, da presença de micropoemas, das construções cubistas e, sobretudo, do registro do cotidiano banal, tomado como motivo poético. É importante lembrar que Alguma poesia, não é somente uma obra sintonizada com as propostas de 22, posto que nela já se enunciam o permanente humor - meio irônico, meio amargo – do poeta, assim como várias das preocupações que serão recorrentes na poesia drummondiana.

O Poema de Sete Faces, poema de abertura de Alguma poesia, registra ao mesmo tempo vários ângulos da realidade que o observa, assemelhando-se aos pintores cubistas. Esse procedimento de colagem rompe com a unidade do texto e cria versos ou estrofes que aparentemente não mantêm ligação lógica entre si, sendo apenas fragmentos reunidos numa composição desarmoniosa.

Cada uma das sete estrofes registra uma percepção do “eu - gauche”, que capta aspectos da realidade multifacetada, incompreensível em seu conjunto, como se sugerisse uma colagem de fragmentos desordenadamente reunidos ao gosto de um pintor cubista. É curioso que neste poema também se resumem outros temas que, por repetidas vezes, aparecem em Drummond, como:

O indivíduo “um eu todo retorcido”:

Quando nasci, um anjo torto

desses que vivem na sombra

disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

A referência ao erotismo:

As casas espiam os homens

que correm atrás de mulheres.

A tarde talvez fosse azul,

não houvesse tantos desejos.

O registro seco, breve do que vê:

O bonde passa cheio de pernas:

pernas brancas pretas amarelas.

Para que tanta perna meu deus,

pergunta meu coração.

A falta de comunicação com o outro:

Porém meus olhos

não perguntam nada.

O homem atrás do bigode

é sério, simples e forte.

Quase não conversa.

Tem poucos, raros amigos

o homem atrás dos óculos e do bigode.

As dúvidas existenciais:

Meu Deus, por que me abandonaste

se sabias que eu não era Deus,

se sabias que eu era fraco.

O egocentrismo e o questionamento do valor estético da literatura para a vida humana:

Mundo mundo vasto mundo,

se eu me chamasse Raimundo

seria uma rima, não seria uma solução.

Mundo mundo vasto mundo,

mais vasto é meu coração.

A limitação emocional:

Eu não devia te dizer

mas essa lua

mas esse conhaque

botam a gente comovido como o diabo.

No Poema de Sete Faces, o poeta retoma a passagem bíblica referente à morte de “Cristo”. Ele fala de vários assuntos: da infância, do desejo sexual desenfreado dos homens, questiona sobre o seu próprio eu e faz uma cobrança a Deus. Ele mostra de modo metafórico uma só realidade, a sua visão desesperançada diante do mundo.

Drummond aborda um cotidiano tedioso, no qual ele busca se situar, numa tentativa de superação do seu próprio eu, que chega a ultrapassar os obstáculos da vida do qual é impossível fugir. Há também uma visão masculina extremamente pessimista; o homem de Drummond é desiludido, melancólico; prefere embebedar-se a enfrentar os obstáculos impostos pela vida.

Conclusão:

Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade, apesar de pertencerem a períodos distintos, assemelham-se por direcionarem suas obras para seus semelhantes, ressaltando em suas poesias a atitude de combate à tradição. Ambos inspiram-se na vida cotidiana, enfatizando as injustiças e a descrença em um mundo que vive em constantes conflitos - isso é perceptível nos poemas Os cortejos e Poemas de Sete Faces.

A poesia modernista de Drummond e Mário rompeu com o passado, transformando a "Era moderna" num marco, no que tange à transformação de tudo o que era considerado acadêmico.

A presença marcante do verso livre, nestes poemas, mostra a viabilização de uma linguagem simples - recurso muito utilizado por ambos para relatar suas vivências de forma um tanto subjetiva, defendo a liberdade de expressão nas artes modernas.

*AUTORAS

Dam Costa
Enviado por Dam Costa em 04/10/2008
Código do texto: T1211546
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