AS TRANSFORMAÇÕES DA SERPENTE. In: O Pentateuco, organizado por Félix Garcia López São Paulo: Paulinas Ed., 1998.
AS TRANSFORMAÇÕES DA SERPENTE. In: O Pentateuco, organizado por Félix Garcia López São Paulo: Paulinas Ed., 1998.
AUTOR: ASURMENDI, Jesús Maria.
Número de páginas: 11 – p. 102-113.
O texto trata da serpente destacando seu significado ambivalente no contexto do Antigo Testamento, o que tem em comum com outros contextos culturais e suas respectivas mitologias.
A fundamentação teórica da afirmativa do autor encontra-se em vários textos do Antigo Testamento, numa passagem do Evangelho de João e num achado arqueológico ocorrido em Timma – nas proximidades de porto israelita do mar Vermelho.
O autor inicia sua exposição pela exegese de Gn 2, 4b-24 e 3,1-24. Em Gn 2 a descrição da serpente é ambígua, não necessariamente negativa: a serpente é um animal “astuto”. Em Gn 3 a serpente ganha claros contornos negativos e é condenada junto com homem e mulher: este traço comum entre a serpente e a humanidade, confere à primeira um sentido arquetípico, relacionado à natureza e à existência humana. O papel da serpente em Gn vai determinar a fixação de seu significando de ser que engana e tenta. Em Sb, texto que não faz parte do cânon judaico, a serpente aparece como aquela que trouxe a morte à humanidade que, na pessoa de Adão, aceitou sua proposta. Esta tese encontrou grande aceitação entre judeus e cristãos – mas há correntes judaicas que encaram a morte como parte do destino humano e não como resultado do pecado. Esta identificação da serpente de Gn 3 com o diabo da Septuaginta aparece também em Jô 1-2; 1 Cr 21,1 e Zc 3, e vai ser confirmada no Evangelho de João 8,42-47 e na cena da tentação de Cristo. O pano de fundo da serpente retratada em Gn 3 é o mito babilônico de Gilgamesh que ansia encontrar o segredo da imortalidade; foi presenteado pelo Noé babilônico ao herói Utnapistin uma planta capaz de fazer do homem um imortal, mas que é comida pela serpente enquanto Gilgamesh está dormindo.
Em Nm 21, 7-9, nos é apresentado o lado positivo e negativo da serpente: a serpente venenosa, como instrumento de punição do pecado humano e a serpente antídoto. Esta última dá vida e salvação e é assim assimilada pelo Cristianismo como símbolo do próprio Cristo crucificado. A serpente de bronze tem o status de objeto confeccionado por Moisés. Após o que o cenário muda e aquele objeto venerável desde Moisés tornou-se idolátrico e foi destruído (2 Rs 18, 4).
A origem da serpente de bronze, segundo datação (sex. XIV e XII) de um objeto de doze centímetros encontrado pelo arqueólogo Rothenberg, em Timma, está relacionada com a exploração de cobre pelos egípcios, com uso de mão de obra local, como os madianitas, que eram semi-nômades regionais e estavam trabalhando então na mineração. A serpente de bronze com cabeça de ouro foi encontrada no estrato desse período.
Em Ex 2, 15-21, está relatado o encontro de Moisés com Séfora, filha do sacerdote de Madiã, Jetro, com quem Moisés se casa. A relação de Moisés com o sogro se revela como de muita confiança, segundo o capítulo 18: Jetro aconselha sabiamente Moisés a respeito da condução e administração da justiça em Israel; seu aconselhamento é acatado pelo líder de Israel. Moisés se vale da ajuda dos madianitas na travessia do deserto, como está relatado em Nm 10,20-33. Daí podemos concluir que os madianistas exerceram influência sobre Israel em assuntos de importância social e, como o autor quer demonstrar, em assuntos cultuais.
Posteriormente, no decorrer da história, Madiã perde prestígio diante de Israel e os dois povos entram em conflito. A Bíblia relata que os madianistas mantiveram um culto envolvendo prostituição sagrada concomitante à infestação do povo por uma epidemia (Nm 25) que resultou na morte de número considerável de pessoas e, ainda, que oprimiram os camponeses de Israel, com reação do povo, liderado por Gedeão em guerra santa (Jz 6-9). Segundo o autor, tal indisposição dos israelitas contra Madiã apenas confirma a anterior intimidade e sólida amizade que unia os dois povos, desde os tempos mosaicos.
Partindo de toda a fundamentação acima, o autor trata de demonstrar que os israelitas tiveram em contato com os madianitas e deles aprenderam o culto da serpente de bronze. O texto de Nm 21, ao ser elaborado, tratou a serpente de bronze no sentido de preservar o seu sentido teológico mais condizente com o grande ciclo de murmuração, castigo, arrependimento, intercessão e perdão, que é parte importante do Êxodo. O autor chama a atenção para a ocorrência, neste caso, de um processo de proto-inculturação religiosa israelita, a exemplo do plano de santuários israelitas e do sacrifício.
Quanto à reforma religiosa de Ezequias (2Rs 18,4), o texto que a narra aponta para a aceitação de que um objeto de culto, por mais que sua origem seja santa, pode, com o tempo e variação das situações históricas, se tornar ocasião de perversão e precisar ser destruído para preservar valores mais importantes. A atividade reformista em 2 Cr 31,1 é de iniciativa do povo entusiasmado e vale destacar o silêncio deste livro sobre a destruição da serpente de bronze, o que denota um constrangimento do autor a este respeito, que não assimilara a relatização da sacralidade por motivos históricos, como em 2 Reis.
Em Sb 16, 5-14, a mensagem aos judeus situados em meio à cultura helenista, transmite que a salvação de Deus transcende a importância de qualquer objeto sagrado.
Em João 3,14, a teologia da salvação sintetiza o lado positivo e negativo da serpente de bronze.
O autor conclui que a teologia joanina assimila a relatização histórica da simbologia ambivalente da serpente de 2 Reis e faz a síntese da ambivalência da serpente em bases soteriológicas.
O trabalho é bem articulado e alcança o objetivo de propor um tratamento do símbolo da serpente que esteja aberto a inculturações no contexto da atividade cristã evangelizadora.