Câmera, luz, laranja mecânica
A ditadura de momentos de felicidade é o que nos acomete a todo instante. Diante das velocidades cambaleantes que o ser humano contemporâneo vivencia as experiências, os sentimentos, modos de pensar e agir bem como se portar face à vida o torna uma “bobina urbana”, cada vez mais veloz, suspenso e cheio de fragmentos.
Estes seres, verdadeiros estilhaços humanos de ansiedades e esperanças revelam-se sufocados, envoltos pela fuga resoluta do caos e da solidão.
Seus cotidianos são repletos de devaneios, fugas e dispersões que revelam as tentativas errôneas de escapar das próprias realidades interiores e da auto-reflexão quando estão diante de questões aparentemente intolerantes e amargas, que normalmente acompanham nossas vivências e nossas perspectivas diante da vida.
Em meio à tendência do imediatismo invasor, entrelaçando as vidas e as percepções, o resultado disso é a procura por uma “aparente sensação de felicidade” que ocorre assim como para que se possa “medicar” os ânimos, insatisfeitos na verdade consigo mesmos, com a incapacidade de olhar para dentro das próprias entranhas.
Na tentativa de expurgar o sofrimento de todo o semblante humano, este indivíduo quer a todo custo sentir-se menos sufocado pelos fatos interiores percebidos. O indivíduo, por sua vez, resigna-se a compreender as próprias marcas pessoais, a dor, a repulsa e desordem interior. O resultado disso é o não diálogo, o desprezo a si próprio. É a não comunicação e não fabricação de canais consigo mesmo e com as sombras do ser que gritam e querem ser ouvidas e representadas mediante as escolhas unilaterais do “ego” social e moral.
O que resta após isso é a construção do niilismo das próprias realidades, entregues aos instantes de propensa felicidade errônea que a vida social “fantasmagórica” e que alegoricamente “traduz“, na medida em que nos recompensa com o que podemos chamar de” mimos” da vivência social, ou seja, o amigo que consola com palavras “açucaradas”, o visual renovado num Shopping, os elogios que levantam a “moral”, não é mesmo....?
São na verdade as aspirinas sócio-paliativas, viabilizando a existência do que se acredita ser o mais “puro” indivíduo social, submisso e entregue ao espetáculo monolítico dos instrumentos de adesão dos indivíduos numa sociedade. A partir disso, então, tecemos uma série de exemplificações sobre estes espetáculos: O espetáculo áudio-visual, e nele está inclusa a TV, comunicação de massa, mecanismos políticos, ONGS, o Show busness, com marketing direto, indireto, multinível, baixo nível, e por aí vai... e diria até o tráfico em geral, que gera tanta conversa, discussão e blá-blá-blá...Não deixa de ser dominação léxica, psicológica, intelectual...”pressão pura”. Na verdade, querem apenas atenção, pois já perceberam a repercussão que provocam.
Sobrevivemos todos os dias ao diversos tipos de espetáculos, que tenta reinventar a raça humana e adestrá-la com novelas e filmes de ficção, na tentativa de fazê-las desejar, desejar e desejar o que nas suas vidas reais elas provavelmente não fariam. Por que?
Se não o espetáculo acaba e todo mundo chora!! Que peninha...
O filme Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick, por exemplo, nos dá uma singela demonstração da própria auto- destruição bio-psico-social, tendo a violência como seu instrumento de reflexão sobre opressor X oprimido. Sujeito X Objeto. Ali, o circo e o espetáculo das padronizações de emoções e comportamentos afetam e são afetados pela figura do anti-herói, Alex. Será que ali há espaço para maniqueísmos fugazes? Ou os papéis se invertem o tempo inteiro? A sensibilidade de Kubrick nos descortina as passagens e entraves dos sistemas “organizados”, que a partir dos próprios mecanismos e fracassos cria o que derrota estes sistemas. Alex ao final torna-se indefectível, resistente a altamente adaptado.
E o espetáculo continua. As manchetes desnudam verdades sobre os mais temíveis assassinos, políticos inescrupulosos envolvidos com tráfico (drogas, crianças) estelionato, corrupção, mas no final eles se tornam piores do que antes, estratégicos, dóceis, quase imperceptíveis. Nesta mesma “encruzilhada”, outras violências residem. A violência do descaso. A violência sobre a criança que fica sem escola e sem dignidade, a família que mora e ocupa moradias indignas, o ultraje banidor psico-social no atendimento público em hospitais, a violência doméstica, urbana... Todas essas violências ficam à mercê da ditadura do espetáculo televisivo e massivo, nunca discutidas dignamente. Estão fadadas a serem pensadas como meros deslizes. Sempre adiadas. Postergadas. Transgredidas. Suas expressões são quase sempre “circenses”, dramáticas, ocupando as manchetes “malabaristas” do circo.
Enquanto isso, os críticos sociais e terapeutas questionam e falam dos comportamentos muito individualizados, pós-modernos. Esquecem, no entanto, que este mesmo indivíduo se vê todos os dias ultrajado pelo “espetáculo da felicidade”, que o aliena e tenta apagar-lhe as marcas mais importantes, suas felicidades, repulsas, o seu caos, seu ócio criativo.
Assim como em Alex, somos alijados para bem longe da realidade instintiva, sujeitos à toda sorte esquemas repressores.
Longe de dar qualquer tom terapêutico ao texto (esta não é a intenção), estejamos atentos aos excessos: Excesso do social, excesso de tecnologia, excesso de comunicação... A cibercultura nos mostra que não mais pensamos o mundo sozinhos, este também nos pensa e nos experimenta.
A própria noção de social, como pensada na sociologia clássica desmancha-se e as massas já não podem ser sondadas, transformam-se em maiorias ocultas, silenciosas. A dominação material desaparece a cada dia e cede lugar ao inesperado, à desordem, ao “tudo é possível”.
Portanto, antes de ceder às ditaduras lembremo-nos que com os modelos em crise, mudam-se as recompensas e os espetáculos precisam mudar de direção, roteiro, palco e iluminação.
Obrigada