MEU ÚLTIMO SUSPIRO - LUIS BUÑUEL
Encontro a autobiografia de Luis Buñuel num sebo. No caminho de casa, as imagens dos seus filmes envolvem-se nas paisagens comuns. Viridiana, Nazarin, Tristana, Dom Francisco... Tento reconhecer os personagem nos transeuntes, mas me perco na ansiedade para começar a leitura de Meu Último Suspiro.
A memória é o alicerce para as confissões do autor. Retrato envolvente da história do cinema e do surrealismo. Alguns sonhos compõem a realidade de Buñuel e revelam o homem que revolucionou a arte ao denunciar a ordem estabelecida, a religião e a loucura.
“... a pior das angústias: estar vivo, mas já não reconhecer a si mesmo, já não saber quem se é.” Logo nas primeiras páginas, a narrativa me contagia. O resgate da história e a percepção de que muitas vezes a memória é invadida pelo imaginário e mentiras são transformadas em verdades dão o impulso para os demais capítulos sobre sua vida, suas relações com Lorca, Dalí, Breton e os surrealistas, a Espanha franquista, os Estados Unidos, o México, a inspiração para os roteiros e as dificuldades para produção dos filmes.
Um livro que tira o sono e só consegue ser fechado nas últimas linhas. Encerro a leitura com a necessidade de rever as imagens. Certamente não serão as mesmas que vi há anos atrás. No primeiro dia, revejo A Ilusão Viaja de Bonde, filme poético rodado no México. No segundo, Nazarin (adaptação de um romance de Galdós) e Viridiana (baseado num sonho erótico do autor e numa santa pouco conhecida), filmes densos, críticas pungentes ao fanatismo, às ambigüidades religiosas, aos inocentes... Nazarin é um padre que vive de acordo com a doutrina que ministra, o filme é de uma crueldade (realidade) absoluta e encerra com o padre preso recebendo uma esmola. A protagonista Viridiana (inspirada em Santa Viridiana (1182-1242) contemporânea de São Francisco de Assis) é uma ex-freira que se dedica aos pobres e desvalidos, sua bondade lhe cega para a realidade dos homens. Depois de ser quase violentada, percebe que sua generosidade também é uma forma de crueldade e não será compreendida. Seus ideais se rompem junto às louças utilizadas pelos mendigos no banquete. No auge da baderna, uma fotografia tirada do grupo de mendigos à mesa é uma alusão à Santa Ceia. Na cena final, Viridiana bate à porta do primo e se rende ao mundo materialista, jogando cartas com o homem e sua amante.
No terceiro dia, assisto às obras surrealistas – Um Cão Andaluz e Idade do Ouro – e me aventuro num filme que não conhecia, mas muito referenciado pelo próprio autor – O Alucinado (El).
As cenas iniciais são marcantes. A cerimônia da lavagem dos pés na igreja e a obsessão do homem pelos pés de uma mulher. Uma estranha atração se desenvolve entre ambos. O protagonista – Dom Francisco – é um homem rico, elegante e de boas relações sociais, mas um indício mostra-nos uma fragilidade psíquica desde o início quando ele se sente alvo de uma conspiração e lesado pelo advogado ao ser informado que o seu direito a algumas propriedades supostamente de sua família decaiu.
Dom Francisco trama um emaranhado de situações para conquistar a desconhecida da igreja, noiva de um conhecido. Envolvida com os encantos de Dom Francisco, a mulher rompe o noivado e se casa com ele. Logo, na lua-de-mel, o perfil paranóico do marido se revela na desconfiança exacerbada, na auto-referência, nas idéias de reivindicação, perseguição e grandeza. Traços característicos em doentes mentais que unem as idéias num determinado contexto lógico para sustentar um delírio duradouro e rigidamente estruturado. O paranóico elabora a realidade de acordo com os seus interesses. Sem alucinações. Em algumas ocasiões é frio e distante, em outras, hipersensível.
O enredo de O Alucinado se desenvolve numa viagem psíquica dolorosa, na paranóia do protagonista, no papel da esposa que se deixa encarcerar e submeter à loucura do marido por pena ou por masoquismo, no envolvimento e alienação dos demais personagens.
Num final surpreendente, apesar de almejado, a esposa consegue fugir e Dom Francisco tem uma crise na igreja, quando seu delírio se exterioriza e ele agride o padre que está celebrando uma missa, por se achar alvo de comentários maliciosos e risos. O filme encerra com a visita da mulher e do atual companheiro (ex-noivo) a um mosteiro onde está internado o protagonista. A mulher teve um filho e seu nome é Francisco (fica no ar de quem seria a paternidade). Dom Francisco os vigia distante.
Acabo o filme com o coração dilacerado. A paranóia é uma doença incurável e muitas vezes somos seduzidos pelas próprias características, custamos a perceber a doença e nos desvencilhar do mundo absurdo que nos impõe um paranóico. Li num artigo de psicanálise (acho que escrito por Deleuze) que o autor preferia um esquizofrênico num jardim a um paranóico no divã.
O filme O Alucinado (1949) não foi bem recebido pelo público no lançamento, contudo, Jacques Lacan achou-o veraz e em várias ocasiões o apresentou a seus alunos. Ainda hoje é considerado um bom objeto de estudo da paranóia.
Guardo a lista de filmes de Buñuel que ainda desejo rever dentro da autobiografia e encerro o texto com um desejo de Buñuel, caso lhe dissessem que lhe restariam vinte anos de vida: “... dê-me duas horas de vida ativa e vinte e duas horas de sonhos, contanto que possa lembrar-me destes – porque os sonhos só existem através da memória que os alimenta.”