Tola herança 

Do lado do meu quintal,
Na casa do meu vizinho,
As aves faziam ninho
Na forquilha do varal.
Era o mesmo ritual,
Dia a dia, ano a ano:
Um displicente tucano,
Com seu bico arqueado,
Ficava ali assentado,
Quase que ao abandono.

Parecia um cão sem dono
A espreita da comida,
Que Sinhá Aparecida,
Uma rainha sem trono,
Devagarinho e com sono,
Claudicava no quintal,
Dando lição de moral
Pra quem estava por perto:
Grão de areia no deserto,
Gota d'água em temporal.

A molecada, afinal,
Fazia ouvido de mouco,
Enquanto esperava um pouco
Pra fazer seu carnaval:
A espingarda de sal,
Carregada até o cano,
Roubada do Carcamano,
Dono da mercearia.
Dá-se início à correria
Do jogo quotidiano.

Bola de meia-de-pano!
Campo de terra batida!
Nem Sinhá Aparecida,
Com seu saber Freudeano...
Sujeito grego ou troiano,
De Mossoró ou Natal,
Dava o apito final,
Pra terminar a peleja.
Nem o poder da igreja
Ou do código penal.

A torcida, na Geral,
Xingava a mãe do juiz:
—Vagabunda! Meretriz!...
Et cetera, coisa e tal...
E foi assim que o quintal
Virou sombra da lembrança:
Travessuras de criança,
Uma vã filosofia...
Que a saudade recria 
E nos deixa de herança.
Herculano Alencar
Enviado por Herculano Alencar em 12/10/2021
Reeditado em 12/10/2021
Código do texto: T7362006
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