UM PÉ D'ÁGUA
UM PÉ D’ÁGUA
 — “Invernou!…” — Chove na roça.
— “Melhor tomar uma pinga
Quando a quarta s’endominga
E o dia anoitece em poça
De goteira que respinga!… —
Mais do que pobre na chuva,
Clamo contra os elementos
Após terríveis momentos,
Sem capa, galocha e luva,
Enfrentando os quatro ventos.
Trotava n’uma égua baia
De marcha um tanto ligeira
Mesmo n’aquela lameira:
Vinha n’um caia-não-caia;
N’um sobe-e-desce ladeira…
Enquanto a tarde baixava,
Eu e a égua no desvario
Fomos tinindo de frio,
Pois tanto por chuva brava
Quanto por vento bravio.
Longe avisto a propriedade
De gente rica e importante.
O dono andava distante
N’alguma distante cidade…
Sem família pela herdade,
Ninguém me vê no aguaceiro.
E eu… Vejo selas de couro,
Mais duas esporas de ouro
Junto à tulha do caseiro
Penduradas qual agouro…
Chego encharcado à varanda
E a estranhos peço pousada.
Ciosos de tão má jornada,
Tão-logo a chuva se abranda,
Me levam a outra morada
Onde abrigado eu pernoite…
A chuva não dava trégua
Até que, légua após légua,
N’um rancho no antro da noite
Enfim amarrei minha égua.
Despeço-me do caseiro
Que por guia me trouxera
Àquela extrema tapera
Pr’os lados d’algum pesqueiro
Onde a escuridão impera…
Logo ajeito meus trastes
E me deito cerca ao fogo.
N’uns goles de cana afogo
Da solidão os contrastes
Do azar no amor e no jogo.
Depois de cear solitário
 — Mandioca e linguiça fritas — 
Recordei minhas desditas
N’esse Fado obscuro e vário
Prenhe em passagens aflitas…
Lá fora, a chuva constante
Amaina e volve em pancadas.
E o mundo tão mais distante
Quando escutei as passadas
D’alguém pela noite errante:
— “Ôoo de casa!” — disse o estranho
 —  “Ôoo de fora!” — respondi
Foi se aprochegando ali
E na caneca d’estanho
Logo da pinga servi.
Ele não fez cerimônia:
Bebeu e comeu à farta,
Falou sem mais parcimônia
E, diante de minha insônia,
Mostrou-me enfim uma carta…
“A quem interessar possa,
O portador da missiva
Serviu comigo na activa
Das armas da Pátria nossa…”
Sentados n’aquela choça
Nos fins dos confins do mundo
Passávamos por senhores,
Imersos em bons lavores,
Mesmo que dois vagabundos,
Pedindo alhures favores…
O outro, coletor de raízes,
Andava na mata virgem,
Ostentando nobre origem,
Sobre fundas cicatrizes
E farrapos em lentigem…
Costumado àquele rancho,
Se abrigava da invernada
Até volver para a estrada,
Tomando-se caminho ancho
Que desse em feira afamada.
Era chuva que Deus dava
Alta noite, às bategadas…
Das canecas emborcadas
‘Pós que a língua tilintava
Nas bocas emborrachadas.
Meu visitante animado,
Contava causo após causo,
Quando, do nada, lhe pauso
E m’envido, desafiado,
Uma prova de arrojo e auso:
 — “D’aqui à vila são horas
Debaixo de chuva e vento.
Na borda do mato, intento
Correr trilhas em desoras
E trazer da tulha esporas
Da fazenda dos maganos
Que me deram por retiro
Esta cova de vampiro…
Este abrigo de mundanos…
Onde revolto suspiro.”
Foi dito e feito: Peguei
Meu poncho ‘inda molhado
E saí a pé pelo eirado
Até que à estrada voltei
De novo todo encharcado.
Andando feito infeliz
Curvado em chuva pesada,
Sem ver na névoa cerrada
Mais que um palmo do nariz,
Seguia por rumo a estrada.
Mas os céus, indiferentes,
Por sobre justos e injustos,
Se derramava entre sustos
A meus passos delinquentes…
Mais açoitando os arbustos
E as palmeiras recurvadas,
Em saraiva ora o aguaceiro
Enlameia o trecho inteiro,
Engrossando as enxurradas
Enquanto andava ligeiro.
No baixio, feito enchente
Passava acima da ponte
Um corguinho cuja fonte
Lacrimava tão-somente,
Agora, aqui bem defronte,
Em rio de correnteza
Se via afinal mudado…
Ao muro da ponte atado
Fui, sem susto nem reza,
Atravessar ao outro lado.
Logo eu topei a fazenda
Onde pedira licença.
A minha raiva era imensa!…
O meu rancor era lenda!…
Passei detrás da despensa
Sem ouvir cachorro ou gente
E na tulha penduradas
Vi as esporas douradas,
Que cobicei plenamente
Há poucas horas passadas.
Peguei com algum esforço
Sem ver nem ouvir viv’alma.
Decerto, com muita calma
(Porém, sem nenhum remorso),
Pela alameda de palma
Chego à porteira em paz.
E volto por rumo ao rio
Que enchera todo o baixio.
Deixando as águas atrás,
Eu passo a ponte sombrio.
Já amanhecia quando
Avistei o rancho de pesca
A brisa até correu fresca
Face ao sítio miserando
N’aquela grota grotesca.
O sol nascia no outeiro
E a chuva enfim dava trégua!
Contudo, meu companheiro
Foi sem deixar paradeiro
E nem rastro de minha égua…
Entrei no rancho aturdido
Sem saber o que fazer:
Aonde foi s’esconder
Não podia ser seguido…
Sob a mesa eu pude ver,
A carta mostrada no chão!…
Pegando o papel, aflito,
Havia no verso escrito:
“Ladrão que rouba ladrão…”
Betim  — 14 02 2020