CORDEL DA LUA DE SANGUE E DO SOL ENCARNADO / Quarta Parte: O SOL ENCARNADO

Quarta Parte:

O SOL ENCARNADO

Cor de carne em chaga viva,

O sol a morrer reaviva

A beleza aos olhos meus.

Eu, embora embevecido,

Reflito que existe Deus

Diante de prodígios Seus

Como o sol entardecido.

Sim, se há Deus é na beleza

Do esplendor da Natureza

E em nossos olhos a vê-la.

O mais, é vontade humana

De ver na encarnada estrela

Mais do que uma coisa bela

Outro deus no qual s’engana...

Ou pior, cego à maravilha

D’ela faz outra partilha

Que confirma as Escrituras...

E, arvorando-se profeta,

Com tenebrosas figuras

Exorta às demais criaturas

A vida que acha correta.

Entrementes, ele mesmo

Vocifera ideias a esmo

Sem mover seu próprio jugo!

Fala em nome do Senhor,

Mas não passa de refugo:

Se d’outros juiz e verdugo

De si grande absolvedor...

Se há Deus é porque no céu

O sol despede-se fiel

A cada dia que passa.

E vê-lo partir traz paz,

Maravilhamento e graça

Mesmo qu'ele nada faça

Além de pôr-se lilás.

E depois, lento desdouro

Como se perdesse o tesouro

Que espalhou no firmamento.

Mas, enquanto empalidece,

Um céu de melancolia:

Anoitecendo em poesia,

Uma hora azul oferece...

Mas se há Deus é simplesmente

Por estar aqui presente

O mundo inteiro comigo.

Não entendo santidade

Obcecada co'o perigo

De cair frente ao inimigo,

Que também Humanidade.

Os conflitos são História,

Onde até grande vitória

Logo passa por derrota:

Quem é um vencedor hoje

Nem será digno de nota

Se logo em terra remota

Amanhã ou depois foge...

Se há Deus é que estou vivo

E, nem humilde nem altivo,

Eu me ponho em frente ao sol.

E, até o vir encarnado

S'espalhar pelo arrebol,

Paro para o pôr-do-sol,

Sem já futuro ou passado.

* * *