CIHUACÓATL - a mulher chorona

CIHUACÓATL – a mulher chorona

_______________________________ introito

I

Quem é, depois de ser tantas,

A mais triste das mulheres?...

Aquela a chorar quereres,

Vagando nas noites santas

Face a dores e prazeres.

II

Deusa de imensos poderes,

Servira aos Astecas na guerra.

Hoje, está presa a essa terra

Sem mais outros afazeres,

Senão ser aquela que erra.

III

Ela, a Chorona, que aterra

Os sós em noite de lua

E sobre as águas flutua:

Espectro que alhures berra

As dores da culpa sua...

IV

Quem em prantos continua

Sempre a vagar cerca às águas

Onde se repete as mágoas

Que leva após pela rua

Aos sobrados e meias-águas

V

D'alvos véus, saias e anáguas,

A atravessar toda a vila...

Que nas desoras, tranquila,

Contrastava com as fráguas

De seu olhar que cintila.

VI

Gravada em minha pupila

Feito uma fotografia:

Defronte à matriz sombria,

Enquanto no adro desfila

Em meio à noite vazia.

VII

Já sem descanso ou alegria,

Anda a clamar pelos filhos

E a murmurar estribilhos

De cantigas que se ouvia

Entre bardos andarilhos.

VIII

Segue sem mais empecilhos

Alhures a lamentar

Até com algum topar

E, refulgente de brilhos,

Mais ess’outro assombrar.

IX

Deveras n’esse lugar,

Onde Deus é tão benquisto,

Muitos ainda a têm visto

Chorosa a Chorona a andar

Sem jamais pôr termo n’isto...

_______________________________ a chorona do lago

X

“Quem será esta que avisto,

Por sobre as águas do lago!?”

-- “Quem vem lá?” –- eu mais indago.

-- “Quem lá vem?” – ainda insisto.

“És ser d’outro mundo ou mago?!”

XI

Só o vento, frio e pressago,

Ora à minha voz responde.

Na noite escura s’esconde

Aquele ser tão aziago

Vindo não se sabe d’onde.

XII

-- “Mais às profundezas sonde

À procura da verdade!" –

Berrava para a entidade

Ainda que a mesma estronde

Sismos fendendo a cidade.

XIII

Nas ondas, a claridade

Se aproximou lentamente.

Mas, incertos se alma ou gente,

Fomos em comunidade

Co’os sacerdotes na frente:

XIV

O mais velho simplesmente

Calou-se contemplativo.

Ainda que sem motivo

Ou outra razão aparente

De tão súbito emotivo:

XV

-- “É Cihuacóatl! Eu vivo

A escutar de nosso fim..." –

De facto, irrompe ela assim

Clamar do povo cativo

Ao soar d’estranho clarim:

XVI

-- “Ai, meus filhos! Ai de mim!

Aonde os levarei, de resto,

Por de destino tão funesto

Poderem fugir enfim?

Só a lamentos me presto!...”

XVII

E abria os braços n’um gesto

Que abarcava toda a vila...

Triste visão à pupila,

Clamando em seu só protesto

Desde a lagoa tranquila.

XVIII

Nas águas o luar cintila

E o vento frio do Norte

Envolvente, agudo e forte,

Sobre as campinas siliba

Augúrios de dor e morte.

XIX

Advertidos da má sorte,

Antes que o mal se consuma

Fomos ter com Montezuma,

Anunciar em sua corte

As profecias, uma a uma:

XX

-- “Alteza, como costuma

A deusa ao povo falar,

Cihuacóatl a prantear

É vista em meio à bruma

Vossa desgraça anunciar.”

XXI

“Conta que vêm pelo mar

Gentes mais sábias e antigas,

Que muito embora inimigas

Com poucos irão triunfar

Quer com finezas; quer brigas.”

XXII

“Vossas alianças e ligas

Que haveis na paz e na guerra

-- A expandir do mar à serra

Com glórias e com fadigas

A ordem dos céus sobre a terra” –

XXIII

“Caem sob a treva que aterra

Os homens em confusão

E os faz perdidos em vão:

Sois império que s’encerra

Na mais plena escuridão!...”

XXIV

“Por tal, reporto a visão

De sacerdotes e povo

Que têm, de novo e de novo,

Visto da deusa o clarão

N’estes versos que vos trovo.”

_______________________________ os oito sinais

XXV

“Se este clamor vos renovo

É por recordar sinais

Que vos encadeiam finais.

Se em face de vós me comovo

É por sabê-los mortais:”

XXVI

“À deusa com os seus ais

Mais outros sete presságios

Vêm se somar feito estágios

De moléstias terminais

Ou de sinistros naufrágios...”

XXVII

“Ou tal contam os adágios:

”’Nada há tão ruim que não piore.’”...

Mas, antes que algo melhore,

O invasor busca apanágios,

Ainda que nos explore!”

XXVIII

“Primeiro, não se apavore

Quem vir cair uma estrela

Em pleno dia e, após ela,

Qual sarça de fogo core

O céu da noite singela!...”

XXIX

“Depois, em meio à procela

Chamas altas eu contemplo

A consumir todo o templo

Onde um deus se revela

Nosso antepassado exemplo!"

XXX

“E ainda, qual contraexemplo,

Dois relâmpagos seguidos

Explodem incandescidos

Sobre o jardim do antetemplo

De Tzonmolco e mil feridos!"

XXXI

“Por mais e mais desvalidos

Inunda-se Anáhuac, o vale...

Das alturas da Huey teocale

Tenochtitlã vê perdidos

Os prédios de quanto se vale.”

XXXII

“'Mas a boca não se cale...

Eis que caminhando às pressas

Homens de muitas cabeças

D'outros mundos já se fale

Em meio a trevas espessas!...”

XXXIII

“Por fim, cumprindo as promessas

Da volta de nosso deus

Trazem rara ave os plebeus

A ver nas íris possessas

Soldados nos olhos seus.”

XXXIV

“Montezuma, semideus

E grão-senhor dos Astecas!

Após quatro anos de secas,

Eis diante dos olhos meus

A deusa-mãe dos Toltecas...”

XXXV

“Por entre agaves e arecas

Andando junto a junquilhos

Antevê tolos rastilhos

Nos quais as hordas carecas

São mortas feito novilhos.”

XXXVI

“E assim, coberta de brilhos,

Vinha chorando lamúrias.

Augúrios de tais penúrias

Os massacres de seus filhos

Ecoam pelas centúrias”...

_______________________________ a filicida

XXXVII

-- “Quem é essa cujas fúrias

Fizeram-na desgraçar?!?

Como ousa uma mãe matar

Filhos de suas luxúrias

E seus amores sem par?...”

XXXVIII

“Quem crianças fez afogar

Para horror de seu amante!? --

Mas agora, a todo instante,

Mira e remira o lugar

Tendo-se os meninos diante.

XXXIX

E desde então vaga errante

Sempre a chorar, de sorte

Que até se lhe nega a Morte

De pôr-lhe termo consoante

À maldição do ex-consorte.

XL

Muito embora desconforte

Seu choro a quem longe a vê,

Logo lhe nega mercê

Ao sabê-la por seu porte

Alma, não gente que crê...

XLI

O mal por paga se dê

Este mal pior, pois, eterno!

Falta do zelo materno,

Fez o que nenhum porquê

Responde senão no inferno.

XLII

Porém, no mundo moderno

Ainda a veem caminhando

Pelas noites, quando em quando,

Em meio às nevoas do inverno

Chorosa a Chorona errando.

_______________________________ mulheres da meia-noite

XLIII

Pelos lugares onde ando

Escuto histórias como estas

De mulheres tão molestas

Pela escuridão penando

Por suas acções funestas.

XLIV

Com semelhanças honestas

Às famosas mexicanas,

Lendas sul-americanas

Também recordam modestas

As tristes almas mundanas.

XLV

Embora pareçam humanas,

Há tempos elas não são...

E alhures vagando em vão

Espalham, belas e insanas,

Murmúrios na escuridão.

XLVI

Têm em comum a ilusão

De repararem malfeitos

Ao aterrorizar sujeitos

Que encontram na escuridão

E logo lhe estão afeitos.

XLVII

Visto a princípio insuspeitos

Seus olhos na noite escura,

Aproximam-se à procura

De serem por ela aceitos

Face à tão bela figura.

XLVIII

Têm uma certa finura

De suaves gestos e falas

Enquanto lh'enchem de galas

E exaltam-lhe a formosura,

Coçando-se as barbas ralas...

XLVII

E ela, tentando tocá-las,

Não dão senão arrepios

Visto d'ela os dedos frios

Lhe traem as mãos ao mostrá-las

Pálidas a homens vadios.

XLVIII

Estes percebem sombrios

Os olhos d'aquela bela,

Passando a ter junto d'ela

Pasmos um tanto tardios

Tal repulsa lhes revela.

XLIX

-- "Mas que mulher era aquela?"... --

Dizem consigo ao partir

Ainda sem descobrir

Qual plano que teria ela

Quando o parou a sorrir.

_______________________________ a loura do bonfim

L

Em Minas costuma-se ouvir

Da loura que ao sem-abrigo

Leva, amorosa, consigo

Para o seu lar sem porvir

Que é o seu frio jazigo!...

LI

Sim, esta de que algo digo

Reside n'um cemitério...

Buscando a si refrigério,

Seduz quem se acha a perigo

De cometer um adultério.

LII

Envolta em alvo mistério

Cerca o rapaz, linda e loura.

Enquanto a coruja agoura,

Lhe invita a falar a sério

Antes d'aurora vindoura.

LIII

Ela o coitado desdoura

De admirar seu triste fim.

E, manso, o encaminha enfim

Qual rés furtada à lavoura

Por ardiloso festim.

LIV

Chorando, diz: "Ai de mim!!"

E tão-logo o carro estaca

Rápido o passa na faca!...

"Cemitério do Bonfim"

Estava escrito na placa!

LV

Amanhã, no edifício Acaiaca,

Pouco antes que o sol desponte,

A ver o céu traz-do monte

Que à serrania destaca

A bela Belo Horizonte.

LVI

A loura outra vez nos conte

Sua história passional

Estampada no jornal:

"Dama do Bonfim na fronte

Esfaqueia um marginal."

LVII

Desgraçada tal-e-qual,

Sabe viver seu papel:

Morta sem amor e anel,

Vagará espiritual

Sem nunca chegar ao céu.

LVIII

Andando de déu em déu

Toda noite se renova

Repetindo a sua trova:

Dos altos do arranha-céu

Até as funduras da cova!

LIX

Mas quem de seus beijos prova

Há-de viver assombrado

Ferido ou não no costado.

Certo de que se comova

De à própria morte beijado...

_______________________________ a saiona

LX

-- "Qual o mais terrível Fado

D'entre as almas penadas?

O da mulher das baixadas

Que homens infiéis tem matado

Vagando pelas estradas..."

LXI

Como as outras desgraçadas

Esta também enlouquece

Ao ouvir quem mal a conhece

Contar do esposo escapadas

E grande ciúme padece.

LXII

E logo após lhe acontece

De homicida se tornar:

Filho e esposo faz matar

Além da mãe que parece

Pouco antes a amaldiçoar:

LXIII

-- "Matas quem soube te amar?

Maldita sejas: Não morres!

D'oravante tu percorres

As planuras sem findar

Buscando quem te desforres!"

LXIV

E, n'isso, do alto das torres

Das célebres catedrais

Um brilho intenso demais

Incandesceu sobre os jorres

Das fontes dos mananciais...

LXV

Desde então caça os mortais,

Belíssima de saião preto

A seduzir o incorreto:

Quem da regra dos casais

Burlando em passeio secreto.

LXVI

Se d'esses o país repleto,

Nos Llanos de Venezuela,

Muito comentam d'aquela

Que esmagava feito inseto

Quantos bulissem com ela.

LXVII

Tão violenta quanto bela

Tem para nossos desvelos

Negros e longos cabelos

E olhos aos que sem cautela

Têm sido o pior dos flagelos:

LXVIII

Cortantes, são dois cutelos

Sua mirada de luta,

Que na amorosa disputa

Hipnotizam os donzelos

N'uma mudez absoluta!...

LXIX

-- "Portanto, nem se discuta:

Mulherengo d'esta zona,

Que com as outras desfruta

Reveja a sua conduta

Antes que apareça a Saiona!

_______________________________ epílogo

LXX

De volta à vossa poltrona,

Eu vos deixo n'este ponto.

Pois já, assombrado e tonto,

Como alguma beladona

M'entorpecesse de pronto...

LXXI

Mas vós, leitor que confronto,

Apurai vossos ouvidos

A perceber os gemidos,

Passando conto por conto,

Em desespero vividos.

LXXII

Buscai ouvir os sofridos

Que vagam por esse mundo

Para entender quão profundo

O pavor dos tempos idos

'Inda nos homens fecundo.

LXXIII

Ainda que horrendo e imundo

Insisti, haja o que houver.

Sobre os abismos do querer,

Perguntai, sempre mais fundo:

-- "Quem é aquela mulher!?"

Betim - 13 01 2017