A proeza do cordel
Embora cega, a madama
assuntava de ouvido
qualquer que fosse o ruído,
até de lençol na cama.
Fosse uma boca na mama,
o abrir duma braguilha,
o som do rádio de pilha
em busca duma estação,
ou um dedinho da mão
a cavocar a virilha.
Dizem que a Dona era filha
do padre e da cafetina,
e que vazou a retina
no chifre duma novilha,
e que rezava a cartilha,
nos missais do Padin Ciço,
pra firmar o compromisso
com os seus ensinamentos
e banir maus pensamentos,
quando abraçasse um noviço.
E talvez por causa disso
mais aguçou os ouvidos,
alijou seus "possuídos"
e logo perdeu o viço.
"Valei-me meu padrim Ciço!"
Quase sempre repetia,
quando algo acontecia,
que lhe ferisse o pudor...
Assim levava o andor
nos ombros, dia após dia.
Vivia Dona Maria,
como era conhecida,
posta a cuidar da comida
da gente e da montaria,
da cela, da estrebaria,
dos provimentos do bar...
mas não deixava passar
um nada despercebido:
lá estava o seu ouvido
no ponto pra escutar.
Oque me coube contar
em redondilha maior,
embora saiba de cor,
eu careço anunciar,
que um menestrel do lugar,
bem antes deste cordel,
fez merecer o troféu
por esta vã criação,
que, pelo sim pelo não,
ora escorro no papel:
"O quarto de dona Irene
era mijo amanhecido!"
Também cheirava a libido
de mulher sem higiene.
O odor era perene,
dia e noite, noite e dia,
fazendo Dona Maria
praguejar indignada,
a xingar cada mijada
que dona Irene vertia.
Apesar da arrelia,
ela fazia o serviço
rezando pro padim Ciço,
enquanto se maldizia:
—Inda pego essa vadia,
essa sendeira safada,
e logo após a mijada
lhe enfio num penico:
sabão em barra no xico
e sabugo na rabada.
E assim seguia a toada
como era de costume:
Maria com o queixume,
Irene com a mijada...
até que na madrugada,
sob um céu azul-anil,
Dona Maria partiu
pra cidade do além
e dona Irene também,
só que esta ninguém viu.
No dia um de abril
do ano sessenta e nove,
há quem diga e há quem prove,
nessa pátria mãe gentil,
que Dona Irene sumiu
logo após Dona Maria,
porque ambas foram cria
das estórias de cordel,
capaz de juntar no céu
a reza e a putaria.
Embora cega, a madama
assuntava de ouvido
qualquer que fosse o ruído,
até de lençol na cama.
Fosse uma boca na mama,
o abrir duma braguilha,
o som do rádio de pilha
em busca duma estação,
ou um dedinho da mão
a cavocar a virilha.
Dizem que a Dona era filha
do padre e da cafetina,
e que vazou a retina
no chifre duma novilha,
e que rezava a cartilha,
nos missais do Padin Ciço,
pra firmar o compromisso
com os seus ensinamentos
e banir maus pensamentos,
quando abraçasse um noviço.
E talvez por causa disso
mais aguçou os ouvidos,
alijou seus "possuídos"
e logo perdeu o viço.
"Valei-me meu padrim Ciço!"
Quase sempre repetia,
quando algo acontecia,
que lhe ferisse o pudor...
Assim levava o andor
nos ombros, dia após dia.
Vivia Dona Maria,
como era conhecida,
posta a cuidar da comida
da gente e da montaria,
da cela, da estrebaria,
dos provimentos do bar...
mas não deixava passar
um nada despercebido:
lá estava o seu ouvido
no ponto pra escutar.
Oque me coube contar
em redondilha maior,
embora saiba de cor,
eu careço anunciar,
que um menestrel do lugar,
bem antes deste cordel,
fez merecer o troféu
por esta vã criação,
que, pelo sim pelo não,
ora escorro no papel:
"O quarto de dona Irene
era mijo amanhecido!"
Também cheirava a libido
de mulher sem higiene.
O odor era perene,
dia e noite, noite e dia,
fazendo Dona Maria
praguejar indignada,
a xingar cada mijada
que dona Irene vertia.
Apesar da arrelia,
ela fazia o serviço
rezando pro padim Ciço,
enquanto se maldizia:
—Inda pego essa vadia,
essa sendeira safada,
e logo após a mijada
lhe enfio num penico:
sabão em barra no xico
e sabugo na rabada.
E assim seguia a toada
como era de costume:
Maria com o queixume,
Irene com a mijada...
até que na madrugada,
sob um céu azul-anil,
Dona Maria partiu
pra cidade do além
e dona Irene também,
só que esta ninguém viu.
No dia um de abril
do ano sessenta e nove,
há quem diga e há quem prove,
nessa pátria mãe gentil,
que Dona Irene sumiu
logo após Dona Maria,
porque ambas foram cria
das estórias de cordel,
capaz de juntar no céu
a reza e a putaria.