XANGÔ - o orixá da justiça

XANGÔ - o orixá da justiça

introito

I

Bahia, todos os santos

Te celebram a grandeza!

Terra onde até o mar reza.

Quer pela força dos bantos

Ou dos malês a nobreza.

II

Mas dos nagôs, com certeza,

A trilha que adentra o oculto.

Manifestada no culto

A ancestrais na Natureza

Que co'os búzios consulto.

III

Mulheres e homens de vulto

-- Negros d'África oriundos --

Veem os seus filhos fecundos

Dançando em meio ao tumulto

D'esses tambores profundos

IV

Horas, minutos, segundos...

A Gira a gira-girar

Se o santo toma lugar

Ao transitar entre mundos

Para o terreiro adentrar.

V

Se acaso saracotear

Uma baiana senhora

A mocidade apavora

Pois sabe pasma quedar

Até que clareie aurora.

VI

Os santos que ali se adora

São chamados de orixás.

Pessoas que, boas ou más,

Souberam viver sua Hora

Vencendo ante guerra e paz.

VII

E a memória que se faz

De suas vidas e glórias

São revividas histórias

D'aqueles cuja alma audaz

Resiste a leis ilusórias.

VIII

Contra discriminatórias

Actitudes de somenos

Vão em procissão, serenos,

Certos de suas vitórias

Face a grandes e a pequenos.

XI

Quem só com fel e venenos

Demoniza a sua fé

Crê-se mais perfeito que é

Quando sequer é, ao menos,

Homem a encarar de pé.

X

Cogito que seja até

Metade do homem que acusa

Com uma fala confusa,

Que faz da vítima ré

E herói d'aquele que abusa...

XI

É algo que já não se usa

Ter por maligno o diverso.

Embora tão controverso,

Que esperança assim conduza

Um povo ao mundo disperso...

XII

Quando Deus criou o Universo,

Não fez do homem o mais forte...

Se o outro não crê, não me importe,

Malgrado o digam perverso

Condenando-o, infiel, à morte.

XIII

Mesmo que a crença conforte,

Jamais devia impelir

Povo algum a se agredir.

Pode-se afirmar, com sorte,

Que o real pecado é excluir...

no terreiro da casa branca do Engenho Velho

XIV

Quando a ladeira eu subir

Para ver meu pai Xangô.

O repique do agogô

Eu quero, encantado, ouvir

Onde o pai, o filho e o avô.

XV

Quero a bênção de Nhô-nhô

E os conselhos de Sinhá.

Quero a força que a aura dá,

Se dendê, quiabo-gombô

Em oferenda a Oxalá.

XVI

E quero a alegria que há

Deixando o mal pelo bem.

D'onde a esperança me vem

Não porque perdida já,

Sim p'la vitória que tem.

XVII

Pedir licença convém

Para se entrar no terreiro

E, como bom brasileiro,

Peço a meus santos também

Já de janeiro a janeiro:

louvado de todos os santos

XVIII

--"Salve são Jorge, o guerreiro

Em luta contra o dragão.

Mártir são Sebastião

Que crivado no madeiro

É nossa consolação."

XIX

"Salve a santa do trovão:

Bárbara, que ao sertão troa.

Louvada e santa pessoa,

Em junho, viva são João!

E mais de são Pedro a loa."

XX

"Mas salve a Virgem tão boa

Que o povo faz mais feliz

D'entre o louvores que fiz,

Santo Antônio de Lisboa

E são Francisco de Assis."

XXI

"Louvar os santos eu quis,

Mas falta louvar enfim

Jesus, salvador de mim.

Glória e aleluia se diz:

Cristo, o Senhor do Bonfim."

XXII

"Louvo, portanto e por fim,

Mulheres e homens da terra.

A gente humilde que encerra

Em si seu sagrado sim

Ao mistério que a Hora aterra.

XXIII

"Louvo, na paz e na guerra,

Àquele que aqui me trouxe.

Xangô, meu pai, seja doce

A morte de quem se aferra

Que o mundo mais justo fosse. "

XXIV

"Defenda eu a herança e a posse

Que me vem desde os antigos;

Saiba honrar filhos e amigos

A incutir-lhes bem precoce

Destemor face aos perigos"

XXV

"Na vitória, os meus inimigos

Aprendam de mim confiança:

É Justiça, não vingança

Sempre o melhor dos abrigos

Onde pôr nossa esperança."

XXVI

"Na derrota, haja lembrança

Dos combates mais renhidos...

Heróis jamais são vencidos,

Se nos pratos da balança

Bem provados e medidos."

XXVII

"Para que co'os dons obtidos

Combater o bom combate

Seja o correto arremate

De tantos anos vividos

Sob o pendão escarlate".

o discurso de Xangô

XXVIII

E assim respondeu-me o vate:

--"Sê bem-vindo quem vem bem!

Feliz o que olha p'ra além

De qualquer humano embate

A luz que a Justiça tem."

XXIX

"Quem é da verdade vem

Co'os olhos francos, de pé.

E, altivo, consegue até

Conhecer no meio de cem

As vozes do candomblé."

XXX

"Verdadeiro acto de fé,

Crente -- por assim dizer --

É bem se atrever a ser

Sem ser, de facto, quem é

E, mais que olhar, saber ver."

XXXI

"Não temas mais t'esconder

Em numerosos segredos...

Cuida que jamais tais medos

Consigam te demover

De teus projetos mais ledos."

XXXII

"É dia de festa! Credos

De toda Terra acorrei!

Eu, que entre bravos lutei,

Nas pedreiras e arvoredos

Minha vitória alcancei."

XXXIII

"Já fui homem, já fui rei.

Onde mor memória se há,

Luzindo meu nome está

Pela glória que encontrei

Quando o fado estrela dá."

XXXIV

E saudava: --"Saravá!

Vem na luz quem é da luz!

Quem a seus irmãos conduz

Lá pelos jardins d'Alá

Ou na glória de Jesus!"

XXXV

"Senhor do Bonfim na cruz

Ou o Profeta no crescente

No coração d'essa gente

Onde a verdade reluz

Como um sol, eternamente..."

XXXVI

"Mas triste é ver logo o crente

Hostilizar seu irmão...

E detonar-se a explosão

Que arremessa, indiferente,

Dúzias de corpos ao chão!..."

XXXVII

"É ver em seu coração

Uma fúria que odeia e mata:

Amigos de longa data

Se desconhecem então,

Iniciando rixa ingrata..."

XXXVIII

"Nada mais fácil desata

Um nó intrincado ainda

Noutra guerra santa infinda,

Que aos terreiros desbarata

Com ordem de igrejas vinda."

XXXIX

"Mas essa gente tão linda

Que ao Engenho Velho acorre

Há tempos ninguém socorre:

Malgrado de luz prescinda,

Por obscuros becos, morre..."

XL

"O que na Bahia ocorre,

Acontece em toda parte:

Quem crê diferente parte

E para os cafundós corre

Escondendo-se fé e arte."

a história de Xangô

XLI

Calou-se o Santo dest'arte,

Entristecido decerto:

A intolerância há aberto

Feridas que ele comparte

Pelo coração deserto.

XLII

Perguntei:--"Meu pai, por certo,

Quem é esse que me fala?

Parece um rei, mas se cala...

Longe, o seu rosto encoberto,

Porque o vejo n'essa sala?

XLIII

O velho apruma a bengala

E diz:--"Xangô das pedreiras!

Senhor das hordas guerreiras,

Cujo machado se estala,

Abrindo sete cachoeiras!!!"

XLIV

"De verdades verdadeiras

Que o justo faz a Justiça!

Na guerra teve a premissa

De lutar desde as primeiras

Centelhas que o fogo atiça."

XLV

"Se odeia a morte e a cobiça,

Ama o correto e o direito.

Mas sempre ao batuque afeito,

Se a festa a seu povo viça,

Festeja o rei satisfeito."

XLVI

"Seja com enxadas no eito;

Seja com foices na luta;

Todo o exército executa

Ao seu comando perfeito

Quando em renhida disputa."

XLVII

"Mas o inimigo lhe imputa

Duras perdas na peleja...

Embora cercado esteja,

N'uma formação astuta

Consegue quanto deseja."

XLVIII

"E ainda que então se veja

Rechaçado a cada avanço,

Contra-ataca sem descanso

Sua vanguarda que almeja

Todo o terreno expanso."

XLIX

"Todavia, fora um lanço

Previsto pelo adversário:

Em roda, em ataque vário,

Massacram com fúria e ranço

Àquele grupo solitário."

L

"Vendo o destino arbitrário

Que vitimou seus guerreiros,

Xangô fulmina os outeiros

Co'o machado temerário

Rompe penedos inteiros!"

LI

"N'esses furores certeiros,

Bramindo com tal violência,

Lhe veio ao tomar consciência

Da barbárie que estrangeiros

Ceifam dos seus a existência."

LII

"Os feridos, sem clemência

São torturados e mortos.

Ouviam todos, absortos,

Uivos d'extrema dolência,

Rostos rasgados e tortos..."

LIII

"E os mais macabros desportos

Onde bolas das cabeças...

Brincam, crianças às avessas,

Com tais corpos boquitortos

Urrando ameaças expressas."

LIV

"Face a uma loucura d'essas,

Xangô com fúria responde.

Batendo sem saber onde

Revira os céus de promessas

Contra quem dele s'esconde."

LV

"E embora às estrelas sonde

Justiça, jamais vingança,

Jura com tal segurança

Que raios rachavam a fronde

De árvores à sua andança."

LVI

"O ímpeto trouxe esperança

Aos guerreiros combalidos.

Vendo até morros batidos

Pelo machado, a lembrança

Deixam por fim dos caídos."

LVII

"Avançam todos unidos

Ao alto clamor de seu rei.

E vencem àquela grei

De invasores que, rendidos,

Anseiam de Xangô a lei."

LVIII

"Sim, porque conforme sei,

Pediam que, olho por olho,

Tratassem quem no ferrolho

Aguarda o juízo... Olhei

E vi os presos no encolho...

LIX

"Quanto da história recolho

Foi de ver e ouvir falar.

Quando, naquele lugar

Rosto retalhado e caolho

Deixaram a amedrontar."

LX

"Mais e melhor torturar

Seu ministério queria,

Porém, Xangô exigia

Conforme a lei se julgar

Cada detido que havia."

LXI

"Assim, ao líder cabia

O mal por mal ordenado

E à morte foi condenado.

O resto, Xangô sabia

Que apenas tinham lutado."

LXII

"O caso, bem reputado,

Ficou de jurisprudência.

Demonstrou toda a excelência

Com que pôde, de seu lado,

Xangô julgar a inocência"

LXIII

"De facto, com deferência

Recorda o povo nagô

As histórias de Xangô

No mundo e na transcendência

Na oferenda de gombô."

despedida do terreiro

LXIV

Ao fim, falei a Nhô-nhô:

--"Feliz o ouvido que ouviu

E feliz o olho que viu

Quanto, desde o mil-avô,

Faz memória ao que existiu. "

LXV

"Feliz quem como eu sentiu

Bater forte o coração

Quando pela multidão

Na rua o afoxé partiu

Em sons de negra emoção."

LXVI

"O que tenho é gratidão

Só por ter estado aqui!

Por tudo o que vi e ouvi

A alma na palma da mão

Eu, deslumbrado, senti.

LXVII

"Levo do que conheci

O mais profundo recordo.

Se de alegria transbordo,

É porque um sonho eu vivi

E d'ele jamais acordo."

epílogo

LXVIII

Deixo a Bahia de acordo,

Que tudo lá é intenso.

E tudo é maior do que penso...

E tudo é mais do que abordo...

Dentro d'um amor imenso.

LXIX

E as almas grandes que incenso

São maiores quando seu povo

Faz com que exista de novo

D'África, outro reino extenso,

Que no quiabo ao dendê provo.

LXX

Fé na alegria eu renovo

Sempre, quando em Salvador,

Eu vejo o mundo melhor.

Lá a riqueza, eu comprovo,

Ser mais saber e sabor...

LXXI

A vida, seja o que for,

Pode ser bem mais bonita.

E, quando a gente acredita

Firme no poder do amor,

Essa beleza é infinita.

LXXII

Uma esperança bendita

É tudo o que quero ter,

E não me cegar por ver

Tanta gente que conflita

Tão-só por estar e ser.

LXXIII

Bahia, saiba eu querer

Não viver tão triste e só!

E Xangô, de amor e dó,

Ensine-me a bem viver:

--"Axé, Alaafin d'Oyó!!! "

Belo Horizonte – 28 08 2015

RicardoC
Enviado por RicardoC em 31/08/2015
Reeditado em 02/09/2015
Código do texto: T5365660
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