UIARA - a mãe d'água

UIARA - a mãe d'água

introito

I

Talvez não queiras mais ler

Uma outra história tão triste

Quanto a própria vida insiste

Muitas vezes parecer

Depois que tanto já viste.

II

Ou talvez já descobriste

Algo que te faça rir.

Senão, ao menos sorrir,

Como uma espécie de chiste

Engraçado de se ouvir.

III

Onde vidas a ir-e-vir

Ou histórias de desengano

Aquelas que ano após ano

Explicam d'alguém sumir

Ao sol sulamericano.

IV

Seria orixá africano?

Ou ainda sereias d'Europa?...

Uiara -- a Mãe d'Água -- galopa

Nas águas do rio-oceano

Onde co'a morte se topa.

V

Quando reverdece a copa

Das castanheiras imensas;

Quando, sobre as matas densas,

A sumaúma ciclopa

Com altas galhas suspensas:

VI

A Hileia das várzeas extensas

Transbordando igarapés...

Quando águas vão através

Das chuvas trazendo doenças

Ou tão-somente um revés.

VII

Quando, à deriva, aguapés

Descem suave a correnteza.

Logo, toda a redondeza

Perde a terra sob os pés

Que co'as águas se reveza.

VIII

Na estação das cheias, a presa

Abundante ao predador

Faz com que seja o menor

Dos males ficar ilesa

Ao amazônico calor:

IX

De mirada furta-cor

E negros cabelos lisos,

Uiara a balançar os guizos

Faz doce o morrer d'amor

Pelos seus lindos sorrisos.

X

Quem, ignorando os avisos,

Sai a procurar por ela.

Vai se afogar para tê-la,

Ouvindo nas águas risos,

Que o levam atrás da bela.

XI

A profundeza revela

Tão-somente escuridão...

Morte sem explicação

Se explica aos olhos d'aquela

Que lhe embriaga o coração.

XII

Em meio a essa imensidão

De rios e de florestas,

As araras fazem festas

Com alaridos em vão

Sobre cabanas modestas.

XIII

A gente que habita n'estas

Remotíssimas malocas

Pelas roças de mandiocas

Recorda histórias molestas

De jovens nas pororocas.

XIV

Se ainda palavras ocas

Crês que lês por essas folhas

Ou caso tão-só de escolhas

Que se entretendo colocas

Entre outras imagens que olhas.

XV

Não cuides já se te molhas

Nas águas de rios passados,

Lembrando que os afogados

Ao sumir por entre bolhas

Nos deixam sobressaltados.

XVI

Os olhos esbugalhados

Pelo extremado terror.

Testemunham-nos o ardor

Com que buscaram baldados,

Acima, a luz e o calor.

XVII

Olha quanto pode o amor

E vê quanto faz morte...

Conquanto seja tão forte

A atração indo à favor

Da mais dramática sorte.

XVIII

Se encontraste teu norte,

Pela Amazônia te expandes.

E, enquanto estes versos brandes,

Um mal menor te conforte

Embora por tão longe andes...

o encontro das águas

XIX

Desce o Solimões dos Andes

E encontra o Negro em Manaus.

Um porto de rio onde os maus

Mantêm ambições tão grandes

Quanto o calado dos naus...

XX

Eu... Subo ao porto os degraus,

E embarco rumo a Belém.

Junto comigo, porém,

Trazendo feixos de paus

Um velho caboclo vem.

XXI

Ia rio abaixo e além

A barca conosco, sozinhos.

Pois lá os fluviais caminhos

São os únicos também

A servir os ribeirinhos.

XXII

Até que os rios vizinhos

Se juntam formando um só.

Das barrancas, barro e pó:

A água turva em redemoinhos

Arranca a terra sem dó.

XXIII

O Negro, um negrume só

D'água mais quente e lenta,

Que aquela já tão barrenta

Do Solimões que cipó

Mais aguapé apresenta.

XXIV

A barca sulcava isenta

À linha do claro-escuro,

Que o rio leva seguro.

Milhas e milhas enfrenta

O encontro das águas -- juro:

XXV

Águas de contraste puro,

Tomo pelas mãos mandrionas.

Como a maior das intentonas,

Eu lentamente misturo

O rio das Amazonas... --

o muiraquitã

XXVI

Noite nas tórridas zonas

E o caboclo já de idade

Zoa de boa vontade:

--"Tu tens saudade das donas

Ou as donas te têm saudade?"

XXVII

E continua:--"A verdade

É, de facto, interessante..."

Quando ali, no soflagrante,

Veem uma tal novidade

Que emudecem um instante.

XXVIII

Pois, de facto, o navegante

Às sombras do lusco-fusco

Topara de modo brusco

Com uma ilhota flutuante

Deixando o velho patusco:

XXIX

"Contam desde lá de Cusco

-- Cerca às nascentes do Rio,

Nos altos do serro frio --

Causos antigos que busco,

Para algum tempo vazio."

XXX

"N'um igarapé sombrio

Havia certa cunhã.

Admirava um talismã

Guardado ao mais bravio

D'entre os filhos de Tupã."

XXXI

"Era o seu muiraquitã...

Parecia uma rã gorda,

Pingente preso por corda

Feito em pedra verde e vã

Que triste história recorda."

XXXII

"Nada, todavia, a acorda

D'esse transe ensimesmado.

Longos dias n'esse estado

E até o riacho transborda

O choro que tem chorado."

XXXIII

"Chora por um afogado...

Aquele que ali sumiu

Simplesmente porque ouviu

O doce canto encantado

Que de Mãe d'Água partiu."

XXXIV

"Mulher formosa e gentil

-- Senhora das águas doces --

Uiara costuma os precoces

Tomar para si no ardil

Por adentrar suas posses:

o canto da Uiara

XXXV

--"Quisera, querido, fosses

Amar-me sob essas águas.

Se todo em mim tu deságuas,

Malgrado engasgos e tosses,

Esquece comigo as mágoas.

XXXVI

"Esquece de tuas bágoas

No balanço d'essas ondas!

Esquece as más anacondas

O abraço das ampaláguas;

Sequer das corais te escondas."

XXXVII

"Esquece as antas redondas

Ou 'inda as piranhas do fundo.

Esquece o ronco profundo

Dos jacarés que tu sondas

Nas águas turvas do mundo."

XXXVIII

"Lembra somente que abundo

Em graças p'ra te agradar:

Meus lábios sei adoçar

No mel das jataís fecundo

Para melhor te beijar."

XXXIX

"Se souberes me tocar,

Tenho o calor que acarinha!

Não me deixes tão sozinha

Cá no fundo a te esperar

Quando o prazer se adivinha."

XL

"Vem me fazer tua rainha!

Vem me encontrar face a face

Mesmo que a morte perpasse

Sobre a extremíssima linha

E mais da vida te espace."

XLI

"Vem aonde nada ousasse

Nem ninguém nunca jamais!

Vem, muito além dos mortais,

Atar das almas o enlace

Antes que tarde demais."

XLII

"Cessa de vez os meus ais

A ver-me sob a água clara.

À deriva, a tua igara

Sem saber aonde vais

Foi se escorar na taquara..."

XLIII

Dest'arte, silencia Uiara

N'água ele vê em reflexo

Seu castanho olhar perplexo:

Demoradamente encara,

Na cauda de peixe, o sexo.

XLIV

Louco, tenta ósculo e amplexo

Na imagem que ao tocar some...

Repetindo d'ela o nome

Monologa, desconexo

A ideia que se lhe consome:

lamento do guaraci

XLV

--"Uiara... Por fim eu te tome

Nos braços aos meus abraços!

Depois de esforços, cansaços,

Mais a paixão me consome,

Por esses íntimos laços."

XLVI

"Escusa se olhos tão lassos

Tenho há tanto sobre ti...

Tão lindo teu canto ouvi

Que me acelerando os passos

Eu logo vim ter aqui."

XLVII

"Porém, desde que te vi

Não pude mais ir-me embora.

Quem é das águas senhora,

Também senhora de mi

Passaste a ser àquela hora."

XLVIII

"Recebe-me aqui-agora..."

E já mergulha a buscando!

Só uma onda, vez em quando,

Agitava a água por fora,

Lá do fundo borbulhando.

XLIX

Foi n'este instante nefando

Que sua cunhã icamiaba

Vem e vê como se acaba

O encanto de Uiara o levando

À sua submersa taba...

L

O céu em chuva desaba

Transborda nos igapós,

Ilhando esses cafundós

Onde 'inda boia a açoiaba

Entre aguapés e cipós.

as amazonas icamiabas

LI

Assim os olhares sós

Da ameríndia tão moça

Molhados da chuva grossa

E das lágrimas que após

Junto a seus pés empoça.

LII

A custo volta na roça

Para encontrar suas manas:

Chovia já há semanas...

Preocupada do que possa

Esperá-la nas cabanas.

LIII

Eram de si soberanas

E todas todas mulheres.

Tão donas de seus haveres...

Nas selvas americanas,

Veem-nas qual míticos seres:

LIV

Com seus bélicos saberes

E habilidades guerreiras,

Amazonas verdadeiras

Tinham por bons afazeres

Ir pelejar cavaleiras.

LV

Cavalgam já sobranceiras

Às margens do Rio todo.

Batendo-se sobremodo

Contra as hostes estrangeiras

Sempre com grande denodo.

LVI

Pintam de urucum e lodo

As belas faces à guerra

Espalhando em toda terra

Extremo pavor no engodo

D'um grito que longe aterra.

LVII

Mas a tribo no vale erra

Com insólito costume:

Da copaíba o perfume

Tiravam quando se encerra

Da piracema o cardume.

LVIII

Ornando-se sem ciúme

Para os índios guaracis,

Fazem apelos e ardis

A lhes tirar o azedume

Com seus sorrisos gentis.

LIX

Passam um dia feliz

A se namorar na rede.

É quando a amazona cede

Carinhos aos frenesis

Cujo calor não se mede.

LX

À ousada mão não impede

A amazona já serena.

Sua beleza morena

Quem hábil toma, não pede;

Fazendo valer a pena.

o mundo submerso

LXI

Todas, menos a pequena

Do muriaquitã já baldo.

Como da catuaba o caldo,

De tão azeda, envenena

Toda tostada de escaldo.

LXII

Seu fogo agora é rescaldo

Que arde, mas não queima.

Tanto na memória teima

Como buscasse o respaldo

De gente hostil e toleima.

LXIII

Já famosa pela reima

Evita qualquer companhia.

Até que n'um certo dia

Doce que nem guloseima

Retorna a antiga alegria.

LXIV

A razão ninguém sabia,

Mas sonhara ela co'o morto.

No sonho encontra conforto,

Muito embora e todavia,

Ora o visse estranho, absorto...

LXV

Conta que este mundo é torto

E o outro, o submerso, era certo.

Sob águas tinha desperto:

Uiara lhe havia transporto

Sem saber se é longe ou perto.

LXVI

E onde imaginam deserto

Da gente do fundo é cheio.

É de lá que o saber veio,

Fazendo o pajé experto

Sobre as ervas de seu meio.

LXVII

--"Quando eu vir -- Diz sem rodeio --

"Eu te levarei comigo.

Fugiremos do perigo

De se viver tão alheio

Quem, amante, finge amigo."

LXVIII

"Da icamiaba o hábito antigo

De se excluir d'aldeia os machos

Me fez percorrer os riachos:

Busquei da Mãe d'Água o abrigo

Fugindo dos populachos..."

LXIX

"Quando a vi, penteava os cachos

Às margens d'uma lagoa.

Era metade pessoa...

Metade peixe! E uns fachos

De luz como se coroa!..."

LXX

"Ela me viu na canoa

E cantou seu lindo canto.

Todo tomado de encanto,

Eu me sentei junto a proa

E logo cai em quebranto..."

LXXI

"Espera por mim enquanto

No fundo do Rio eu ir.

Volta de novo a sorrir!

Deixa de lado teu pranto,

Quando daqui for partir."

epílogo

LXXII

Calou-se o caboclo a rir

Já me tirando do enlevo...

À noite na mata escrevo

História que fui ouvir

E nada mudar me atrevo.

LXXIII

Saúdo enfim -- porque o devo --

À gente d'aquelas zonas

Onde Uiara e suas eufonas:

Mito que corre longevo

O rio das Amazonas.

Betim - 07 07 2015

RicardoC
Enviado por RicardoC em 04/08/2015
Reeditado em 05/08/2015
Código do texto: T5334389
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