DONA BLANCA, RAINHA – a mula sem cabeça
DONA BLANCA, RAINHA – a mula sem cabeça
Introito
I
Embora muitos já tenham
Se dedicado a escrever
Sobre a mula antes mulher...
E outros mais ainda venham
Fazê-lo por mais saber...
II
Talvez tenha algo a dizer
E eu dizendo alguém escreva
Inclusive o que não deva
Sob pena de se esquecer
Alguma moral coeva.
III
Quando se trova na treva,
Eis que o silêncio revela
Diante de íntima procela:
“Da vida nada se leva,
Sequer a memória d’ela…”.
IV
Não leva aquele que vela
Sequer a angústia das preces
Como na incerteza d'esses
Que semeando sem estrela
Perdem o tempo das messes.
V
Sim, vão cuidar de benesses...
Pois por trás das causas nobres
Há sempre as causas dos nobres
Ou melhor, seus interesses...
E arcas cheias d'ouros e cobres!
VI
Se todos, ricos ou pobres,
Vivendo vida ilusória
De que serve querer glória?
Enfim, por quem soam os dobres
Da existência meritória? ...
o desencantado
VII
Fica, de infeliz memória,
O infante que evocarei
Por tudo que sou e sei...
Lembrarão a triste história
Do que chamaram d’El-Rey:
VIII
Fiquem os erros que errei...
Porquês de porque tão triste...
E minha mirada que insiste,
Face àquela que tanto amei,
Mesmo que o tempo já diste.
IX
Recitem, de dedo em riste,
Os versos duros que cismo
Em balde, defronte ao abismo,
Sobre o bem e o mal que existe
À espera d’um cataclismo.
X
Entre esse e o próximo sismo,
Preparado para o pior
Seja mais conhecedor
Dos extremos do egoísmo
Nas desventuras do amor.
XI
Visto que, em face da dor,
Boas razões todos têm,
Um monstro, a sua também
Mesmo que ele cause horror
A vitimar outros cem..
XII
Ser gentil quando convém,
Mas cruel de perverso dom,
É ser mau: Mesmo que o tom
Da voz dissimule bem,
Nunca diz nada de bom…
XIII
Como o mais horrendo som
Pôde vir d'uns lábios belos?
Meus mais profundos anelos
Malbaratou junto com
Coroa, escudos, castelos...
XIV
Desgostos e desmazelos
Têm me corroído a entranha
Desde que a terrível sanha:
Vi no pior dos pesadelos
A mudança crua e estranha...
a rainha amaldiçoada
XV
Foi n’um dos reinos d’Espanha
Pelas brumas do medievo
Aquando de régio enlevo
Houvera cousa tamanha
Que recordar mal me atrevo:
XVI
Era infante e após, longevo,
O rei que sombrio enfrenta
Essa lembrança violenta
D’onde o remorso malevo
Tantos anos lhe atormenta.
XVII
A consorte fria e cruenta
Às voltas com sortilégios
Nega sempre os beijos régios...
E, entre esquiva e desatenta,
Cuida de seus privilégios.
XVIII
Entretanto, sacrilégios
Perpetrava com loucura
Pela noite mais escura.
À maneira de aquilégios,
Mas sondando sepultura...
XIX
Dia seguinte, ela figura
Pelo castelo, tristonha.
Crendo real quanto sonha,
Em alheamento procura
Dissipar a hora medonha.
XX
Mas não há quem lhe disponha:
--”Findo o riso, mudo o canto!--
Diz ela, queda em quebranto...
Os pingos nos ís se ponha
Face ao terrível encanto.
XXI
--”Por que ainda sofro tanto?
Mais que triste a minha sorte!
Não que alguém aqui se importe,
Mas, ao menos por enquanto,
Para o amor, antes a morte.”
XXII
“Ou então meu tonto consorte!
Rondando-me os olhos vis,
Por mais e mais infeliz…”--
Mantendo seu nobre porte,
Um outro tanto maldiz:
XXIII
“Suporto-lhe ardor e ardis:
Ele exige um beijo, eu nego!
Quer me abraçar? Não me entrego!
Mas cerca-me de imbecis
Sem nunca me dar sossego…”
XXIV
“Sem embargo, quando chego
Ai de mim, ele me segue...
Malgrado mais eu me negue,
Insiste com seu chamego...
Antes fosse amar um jegue!
XXV
“O tonto, ele antes se esfregue
Nos andrajos d’um mendigo,
A tentar deitar comigo!
Vá ao diabo que o carregue
E esse amor leve consigo!”
XXVI
Chegando junto ao jazigo
Onde enterram uma criança…
Tão longa e só sua andança
E retorna ao hábito antigo
De esperar sem esperança.
XXVII
Logo lhe vem à lembrança
A maldição repetida:
Sétima filha seguida,
Recebe por triste herança
Estranha forma de vida.
XXVIII
Vive de si esquecida
Certa que a qualquer momento
Viverá o encantamento.
Pelo qual desde nascida
Ela espera um livramento.
XXIX
Porém, firma insano intento
Ao lançar mão de magia,
Crédula que o conseguia
Com feitiços ao relento
Nas névoas da noite fria.
XXX
E, assim, prevaleceria
Sobre o mal com um mal maior.
Decidida a fazer pior
Que tudo que se conhecia
Em acto de extremo horror!
XXXI
Evoca com todo ardor
As obscuras potestades,
Cujas imundas vontades
Induziram-na ao terror
Das ocultas realidades.
XXXII
Submissa a tais entidades,
Arvora-se feiticeira
E igual fera carniceira
Ela usa de atrocidades
Nas noites de quinta-feira.
XXXIII
Ultrapassada a fronteira
Entre a luz e a escuridão.
Seu confuso coração
Entrega-se à derradeira
Das obras de perdição.
no soflagrante
XXXIV
Alta noite volta então
À campa do cemitério
Onde, de semblante sério,
Antes, defronte ao caixão
Dera a uma mãe refrigério...
XXXV
A rainha, no seu mistério,
Logo o caixão desenterra
E àquele corpo se aferra!
Devora-o, n'um transe etéreo,
Com todo o mal que isso encerra.
XXXVI
Mas, enlouquecido, berra
O rei, que oculto no breu,
A surpreende já sandeu.
E juntos, caindo por terra,
Se entreolham para horror seu...
XXXVII
Diante do que aconteceu,
Ouviram n’esse instante
Um relincho lancinante!
Algo que nunca se esqueceu
E nem se soube o bastante.
XXXVIII
a transformação
Assim, d’ali sai errante
A semelhante às jumentas:
Solta fogo pelas ventas
Com suspirar ofegante
Em cavalgadas violentas.
XXXIX
Tem o clarão das tormentas
Mas a cabeça invisível…
Que embora pouco plausível,
Corre as estradas poeirentas
Até o intransponível.
XL
Sem embargo, algo terrível
Atravessa horas vazias...
Longas sete freguesias
Galopava a mais temível
Das sós fantasmagorias.
XLI
Para além das fantasias,
Falam do estranho perfil.
Tem sempre quem diz-que viu,
Fazendo más correrias
Pelos sertões do Brasil.
XLII
E pensar que era infantil
O temor d’aquela infanta…
Tentando agir, agiganta
O mal que sempre serviu
Sob sua púrpura manta.
XLIII
Por fim, a mais sacripanta
D’entre todas as pessoas
Por incapaz de obras boas...
Visto que a não desencanta
A récita d’outras loas.
XLIV
Perdendo as duas coroas,
Toda ao mal foi se entregar.
Com noturno cavalgar,
Deixa Madris e Lisboas
Para distante lugar.
XLV
Nos confins onde foi dar
A acreditam concubina
D’algum padre cuja sina
E os sertões assombrar
Até à luz matutina.
XVLI
Noite após noite, a mofina
Relinchava umas mil vezes!
Perpetrando estupidezes,
Colina atrás de colina,
Ia espalhar longe as reses.
XVLII
Desaparece por meses
Mas volta sempre, certinha,
Quando novembro avizinha.
Qual dizem nos entremezes:
“Anda solta uma burrinha…”
sertanejos
XVLIII
Mas aquela terra tinha,
Gente audaz e valorosa.
Ouvindo essa antiga prosa
Decide lhe ir, fosse ex-rainha
Ou mesmo de padre esposa.
XLIX
Esperto que nem raposa
É de todos conhecido...
Tão sábio quanto sabido,
Um sertanejo que goza
Da fama de destemido.
L
Diz-que é facto vero e havido
Que sangrando o lobisomem
Ele tornava a ser homem
Como não tivesse sido
Animal que jamais domem:
fandarronadas
LI
-- "Ainda que grande o tomem
É coisa bem admirável  
Que deixe de ser intocável  
Enquanto bebem ou comem
Ficando assim vulnerável."
LII
"E de modo comparável
Também esse burro acéfalo,
Como Alexandre ao Bucéfalo,
Eu montarei memorável
Co'a força apenas do encéfalo!"
LIII
"Não é nenhum heptacéfalo...
Ao contrário, p'ra matança
Sem a cabeça se lança!
Caçam-no que nem alcélafo:
Na galopeira se cansa...
LIV
Se lhe sangrar, logo amansa!"
-- Diz, todo metido à rábula
E deitou a contar fábula
Dos doze pares de França
Aos cavaleiros da tábula...
LV
De tanta conversa pábula
E extrema fanfarronice,
Entra n’um disse-me-disse,
Descrevendo outra parábola
Já à beira da sandice...
LVI
Quem por acaso o assistisse
Ali, na praça da igreja,
Irrefreável já deseja
Deixar a pacata mesmice
E ir aonde a mula esteja.
o entrevero
LVII
E se assim for, assim seja:
Foram em rancho p'ro mato
Onde, de vera e de facto,
Mula sem cabeça veja,
Encarando-a estupefato.
LVIII
Diante da grandeza do acto,
Toda a alimária da tropa
Bem ajaezada galopa
Para destino inexacto,
Quando com rastro se topa.
LIX
Estava ali sob a copa
De paineira barriguda:
A marca profunda e aguda
D’um coice dado à cachopa
Cortando moita de arruda.
LX
O mistério se desnuda
Logo que a escuridão cai:
Alto relincho lhe trai
E em trote forte, a cascuda,
Das brenhas da mata sai.
LXI
Cerca e grita: --”Avançai!”--
Se aproximando de roda
Aquela gentalha toda,
De lanças em punho, vai
Lhe cutucar sua coda.
LXII
Um, uma embira enoda,
Outra laçada tentando...
Muito se admiraram quando
O laço fechou em roda
Quase o pescoço enforcando.
LXIII
"Tem cabeça!"-- Saem gritando --
"A gente apenas não vê! ..."
De facto, isso foi mercê
Àquele rosto nefando
Que amaldiçoado se crê.
LXIV
Logo entenderam porquê:
Vendo em seu rosto a desgraça,
Essa maldição se passa...
N'um olhar que acaso dê
A mula que ali se caça.
LXV
Assim, a embira que a enlaça
Faz com que enfim apareça
A sua horrível cabeça
Cujo olhar feroz de ameaça
Os faz recuar bem depressa.
LXVI
Porém, lembrando a promessa
Que o sangue finda o feitiço,
Outro lhe finca o roliço
E corre a sangria espessa
Pondo fim ao rebuliço.
LXVII
Pouco depois de tudo isso
Viram arfar o animal
Que de modo espiritual.
Como mulher cheia de viço
Torna à forma original.
LXVIII
D'uma beleza sem igual
E ultramarina mirada
Não tem lembrança de nada
Esquecida já do mal
E da vida enfeitiçada.
epílogo
LXIX
Cumprida toda jornada
Resta, portanto e por fim,
Concluir, de mim para mim
Toda uma vida passada
Entre horas tristes assim.
LXX
De horas bem tristes sim,
Cuja graça é esquecer...
Exacto por não saber
Aonde que chega, enfim,
Quem nunca soube viver.
LXXI
Tomar tenência é mister
Antes que se acabe o mundo...
Porque a existência, no fundo,
É poesia a se escrever
De dentro d’um eu-profundo.
LXXII
Pois todo o verso é oriundo
Dos sonhos de não dormir.
Possa eu saber no porvir
Não me angustiar pelo imundo,
Malgrado o entenda existir.
LXXIII
Possa algum bem d'isso vir
E seja capaz da dor
Quem, contudo, sonhador
Observava a noite cair,
Após o sol ir se pôr.
Belo Horizonte - 05 05 2011