MONÓLOGO DE UM RIO

Vou correr fora do leito

Para te inundar de dor

E mostrar o desamor

Que me tens trazido e feito.

Vou tornar para teu peito

Sofrimento e convulsão

Que por certo causarão

Em teu povo as mesmas mágoas

Que sofro nas minhas águas

Por teus atos de agressão.

Minha calha assoreada,

Rasa e fétida me instiga

A ver-te como inimiga

Quando avanço de enxurrada.

A montante despejada,

A minha água, por direito,

Cobre tudo, não tem jeito,

A buscar velhos espaços,

Velhas cotas dos meus traços,

Ao correr fora do leito.

Solapaste minhas margens

E adentraste meu caixão,

Porém, antes, sem razão,

Ocupaste a minha vargem,

Minhas cotas de passagem,

Da minha água, o corredor.

Logo, cheio, com furor,

Quando as altas cotas trilho,

Varro as casas dos teus filhos

Para te inundar de dor.

Já não me cuidas, cidade,

Só me ofertas teu descaso,

Leito sujo, podre e raso,

Onde perco a qualidade.

Sofro assim por ter, verdade,

Dos esgotos, o fedor,

Que nos ares chego a pôr

Num pedido de socorro,

Exalado de onde corro,

Pra mostrar teu desamor.

Ser ferido na bacia

É parte da minha sina

E flagelo que domina

Meu correr no dia-a-dia.

Sem demora gostaria,

No exercer do bom direito,

Que atendesses ao meu pleito

De ser bem melhor cuidado

Pra cessar todo esse fado

Que me tens trazido e feito.

Se cumprires o que peço

Nunca mais verás revide,

Eu prometo, não duvides,

Sempre cumpro o que professo.

Se falhares no processo

De cuidar dos teus rejeitos,

Por ficar insatisfeito,

Cuidarei de te ferir

E todo mal que me advir

Tornarei para teu peito

Cá, por ti patrocinado,

Tenho as margens asfaltadas,

Minha calha chafurdada,

Fluxo d’água mui minguado,

Meu leito contaminado,

E esgotos em profusão.

Rogo-te, de coração,

Que esses meus males estanques

E que nunca mais tu banques

Meu sofrer e convulsão.

Demonstrando indiferença,

Nem me notas quando passo,

Apesar do grande abraço

Que pra ti sempre dispenso.

Sendo assim fico propenso,

Ante tanta ingratidão,

Causar-te muita aflição

E, com a força das enchentes,

Cobrar-te o cuidado ausente,

Que por certo é atenção.

Sofro sim com teu descuido,

E o descaso me angustia;

Faz morrer, a cada dia,

A pureza do meu fluido.

Logo, de vingar-me cuido

E, todo ano, com minha água,

Lavo minha grande frágua

Devolvendo-te essa dor,

Fruto do teu desamor,

Causa mor de minha mágoa.

Que me vejas com carinho,

Meu desejo mais antigo,

É sonho que está comigo

Ao longo de meu caminho.

Sentindo-me tão sozinho

E vendo como deságua,

Em meu leito, a velha mágoa,

Noto com muita amargura

Que não crias a estrutura

Pra zelar por minhas águas.

Porém¸ resta-me a esperança,

Cidade que lavo e dreno,

Que, limpo, correrei pleno,

Sem o sujo que me lanças.

Portanto minha cobrança

É que enchas de educação

O cérebro e o coração

De todo esse povo teu

Que degrada o leito meu

Em desvairada agressão.

The, 28/02/11 – Humberto Feitosa