"SONHA MAMANA ÁFRICA"

SONHA MAMANA ÁFRICA

DA MORTALHA À REDENÇÃO

“se agora podemos escrever poemas, é porque não ficamos à espera da maré, não aguardamos nem a enchente nem a vasante”

“si bo n’tindi kuma/ aos no na iskirbi poemas... no ka bida

pêra-maré, na intchenti ku bassanti di maré”

Nelson Medina

A desarrumação começa agora, tendo a minha frente uma foto do condominio “Baga-Baga”, cujas ocupantes são as temíveis formigas térmitas. Não são piores nem melhores que a colonização portuguesa levada à costa ocidental da África, especificamente à Guiné-Bissau coroada pelo arquipélago de Bijagós. A dominação morruga foi de tal ordem que conseguiu controlar cerca de quarenta etnias espalhadas pelo litoral e interior. Balantas, Djolas Banhuns, Landumãs, Pajadincas e Fandas são algumas delas. Diante dessa pluralidade racial o jugo então se fez mais presente, mais forte, a ponto do comando ser cabo-verdiano por longo tempo. Como a colônia era de exploração e não de povoamento ficou entregue à própria sorte. Decorreram uma porrada de anos para que o primeiro liceu fosse instalado e assim mesmo só em 1949 e em 1958 o ensino secundário foi efetivamente estabelecido. Sem liderança e as desfavoráveis condições sócio-culturais culminou um fenomenal atraso. Tanto é que, somente em 1960 quatorze guineenses haviam completado um curso superior. De 1850, quando se dá a real ocupação até o inicio do século XXI, com independência realizada, guerra civil praticada e sucessivos golpes de estado perpetrados, a situação sócio-economica-politica-cultural da Guiné-Bissau continua capenga, quase falida. O discurso inflamado dos revolucionários-politicos e suas promessas de um mundo melhor, uma vida melhor ficou na tribuna, no palanque, nos bastiões e não chegou ao povo, às ruas, àqueles que passam fome, que dormem acanhados pelos becos, engelhados na nova identidade num desalento e desgosto por tudo que passaram e passam. De tamanha miséria conseguem ocupar a base da pirâmide humana, ao rés do chão. É chocante, sem dúvida! Mas, uma nova geração, migradora dessa guerra continuada se articula em todos os campos preocupada em realizar os sonhos dos homens, da família, do povo, de uma nação que nasceu de chofre para a modernidade. Como se postam? Através da angustia de suas palavras, do brado feroz que não se cala, das incursões pela noite estranha que atravessa a bolanha, que pega a charrua e a catana na esperança de sulcar e defender as raízes de sua terra, do ventre da Mamana África. E, assim quem sabe debaixo do poilão ouviremos o bombolom e festejaremos dançando n’gumbé para alivio de Vasco Cabral que diz:

“Mãe África

Vexada

Pisada

Calcada até às lágrimas

confia e luta

e um dia a África será nossa...”

A poesia de combate no período revolucionário e pós é de uma riqueza imensa, símbolos e signos numa linguagem metafórica e sonora leva-nos a uma sensação de luta, de vontade de querer participar desse universo de desencontros, de múltiplas tristezas, de incapacidades capazes, de denuncias fundadas e ao acaso deixadas até que:

“...É assim que vamos tecendo as nossas manhãs

de ferro e terra batida

são as cores da nossa vida

onde a juventude se forja

-ardente e gloriosa no peito palpitante do futuro-...”

Helder Proença

No entanto, mal deu tempo para se reconhecer na identidade nacional de uma recém separação (três décadas e uns quebrados) e já estamos às voltas com um narcoestado corrompido e drogado pelo poder dos barões da coca da América Latina. Que sina hem! Mamana África. E o diabo é que esses caras têm dinheiro! Há registros que a região também esteja sendo utilizada por traficantes de heroína do Afeganistão, dado que 45% dos habitantes são muçulmanos. É voz corrente que figuras do Estado e militares, em especial a marinha de guerra estejam envolvidas no narconegócio. E quando o Helder Proença no confronto com o Brasil ...”constatou a selvageria da “civilização” na Guiné-Bissau” pôde avaliar que ...a fome é a ante-sala dessa “civilização”. A realidade é que “são negrinhas de ventre pontudo, levando, apenas púberes, os frutos da ignorância e do ócio dos homens”.

É doloroso dizer...

Mas não tivemos tempo de respirar

O hálito das manhãs sonhadas

Na sua luta para a consecução dos sonhos de um povo, de uma nação, sua obra impregnada de espírito revolucionário, manifesta um caráter social. O colonialismo, a escravatura e a repressão denunciadas é um apelo para a construção de um estado onde a liberdade se faça presente em todas as manifestações. O resgate da cidadania se faz aos poucos, lentamente. A fala crioulo começa a ter presença na mídia e na rua, na musica ela dita o tom. O sintoma telúrico na prosa-poetica de Helder Proença continua latente apesar dos desencantos que os homens causam, não se cansa de louvar sua gente, seus costumes, seu canto, seus anseios. Quando de sua estada no Brasil ficou chocado com a modernidade monopolista e pôde assistir ao espetáculo degradante das calçadas à miséria dos morros. O luxo dos poucos exagera a miserabilidade da maioria. A sua avaliação levou-o a refletir na distante Guiné-Bissau, onde os jagudis fazem às vezes do coletor de lixo. Contudo, o poetar lírico persiste e a narrativa longa do romance começa a contar a história do povo, a dramaticidade vivida, o descompasso cultural senão “fazer da palavra pedra, baioneta e flor necessária”. Por isso, “a nossa luta não deve ser apenas contra os estrangeiros, mas também contra os inimigos de dentro, aquela classe social que não quer o progresso da nossa terra, do nosso povo, mas apenas o seu próprio progresso e bem-estar da sua família (...). A luta para a libertação do nosso país e do nosso povo, condição necessária para o progresso da nossa sociedade como um todo, deve ser dirigida pelos melhores filhos do nosso povo” (Cabral, 1978).

paulo costa

março/2008

paulo costa
Enviado por paulo costa em 29/04/2008
Código do texto: T966693
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