"A ESCRAVIDÃO DOS HOMENS INVISÍVEIS"

“A Escravidão dos Homens Invisíveis”

Não tem nomes, só o desejo de uma vida melhor. Carregam o fardo da ilegalidade através de fronteiras sucessivas - negociadas e pagas, que beiram a espoliação do sagrado bem de existir como ser humano. Como cargas freqüentam os porões abjetos de embarcações inseguras que sob o manto da noite nos picos das ondas traiçoeiras não sabem se amanhecerão vivos ou mortos. A apreensão toma conta de suas almas, o medo se instala e o suor percorre frêmito o corpo acanhado que junto a outros corpos transpiram em uníssono tremor. Não sabem mais de sua identidade, que nome tomaram, vivem as expectativas do alvorecer. Ali no escuro da nau o engelhar das tabuas, o tum tum tum da proa do barco lhe dizem que é um jogo de vida e de morte. É preciso atravessar. Os sonhos da infância tornados obsessão, agora no mundo adulto não se parecem com nada daquilo que imaginaram. Submetidos a humilhação, tratados com desdém, indiferença formam uma horda de desesperados em busca da sobrevivência. Até aqui muitas etapas foram vencidas. O Marrocos se torna uma estação de desemboque de todo o continente Africano que também recebe migrantes do Oriente Médio e Ásia. Os agenciadores ou intermediários como queiram, buscam essa mão de obra sazonal bem lá no interior, afastada dos grandes centros. O desconhecimento da modernidade, de outras civilizações protege e favorece as contratações. Com promessas desafiam o imaginário do simples. Encantados, aguçam-se as possibilidades para o desencanto que irão testemunhar quando não poderem retornar por orgulho, por dividas junto aos patrões ou a incapacidade de suportar o fracasso. Submetidos às condições mais vis de habitabilidade, de jornada de trabalho são configurados escravos da era moderna em pleno século XXI. O racismo, a violência e o medo são práticas de trabalho que asseguram a cadeia de produção. Os galpões, os prédios abandonados que servem de abrigo a esse contingente de homens invisíveis exibem mais do que nunca a mesquinhez do afeto humano. A decadência, o desprezo, o descaso, a miserabilidade da situação não encontra amparo por parte dos organismos responsáveis. Modestas interferências são notadas por algumas entidades. Entre elas a AFVIC – Associação dos Amigos e Famílias de Imigrantes Clandestinos e a Associação OMNIA. O descaso é de tamanha ordem que ratos são convivas presentes nessa indigência de vida. Segundo Hamid, do Sudão “não há ninguém que pareça se importar”. “A violência é outro problema que esses imigrantes enfrentam – e a policia não é a solução. Aqui a policia é a mesma coisa que a máfia, resume Abkarim, mais um marroquino. Ele conta que, um dia um grupo de jovens italianos invadiu o local onde ele dormia com outros imigrantes, bateu em todos e roubou o pouco dinheiro que tinham. Os que foram se queixar à policia acabaram detidos por não terem visto e foram deportados”. “Decidi que vou voltar para Marraquesh. Lá ao menos sou tratado como gente, afirma Abkarim”. Com a criação do espaço Schengen (União Européia) que drasticamente restringiu a emissão de vistos de entrada, provocou uma explosão da emigração clandestina, principalmente para a Espanha, via estreito de Gibraltar. A partida se se dá ao longo de todo o litoral norte do Marrocos, descendo até Kenitra, próximo à capital. O desrespeito se dá em todos os cantos. Em Dabisse nos Alpes da Alta Provença o português, Guilhermino Armando dos Santos Sousa, pagou com a vida o ódio racial quando um dos habitantes da localidade num café do vilarejo proferiu: “Os portugueses consomem ar demais. Tenho vontade de matá-los”. Chocados, muitos habitantes do vilarejo organizaram uma coleta para a familia. Passada a emoção, a lei do silêncio abateu-se sobre o vilarejo e testemunhas recusaram-se a confirmar suas primeiras declarações. Por outro lado, novas artimanhas são engendradas para a entrada em território estrangeiro. Os migrantes marroquinos de bom poder aquisitivo matriculam seus filhos em escolas estrangeiras e requisitam junto à embaixada francesa em Rabat o prosseguimento dos estudos na França. De qualquer forma, como diz “Jean-Pierre Berlan, pesquisador do INRA (Instituto Nacional da Pesquisa Agronômica), o operário agrícola, quando não tem boas razões para passar desapercebido por ser clandestino, é um homem discreto, escondido entre os pomares, enclausurado nas estufas, dissimulado entre as sebes, apenas visível de costas, entre as vinhas”. Alimentam os sonhos desses expatriados figuras como Jamel Debbouz, empresário na Holanda, a cantora Nadia Farès ou um esportista como Zinédine Zidane que trazem inúmeros bens de consumo – carros fascinantes e inacessíveis, por exemplo – que contribuem para que a Europa pareça um eldorado cuja porta deve ser forçada. E assim, violência de um lado, medo do outro: tudo pronto para que perdure um sistema de produção agrícola intensivo SUSTENTADO PELA ESCRAVIDÃO DOS HOMENS INVISIVEIS.

paulo costa

abril/2008

paulo costa
Enviado por paulo costa em 28/04/2008
Código do texto: T965221
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