"A HISTÓRIA OFICIAL"

A História Oficial

Do ventre rotundo

nove meses passados

do útero libertado

a luz se fez

agora livre, desapartado

preso a agonia de viver

em obscura procura

de quem ele ser

ecos ecoam

mudos se tornam

nesse triste viver

elegias de vida

que um dia

cedo ou tarde

num combate fatal

a tona virá

a verdade verdadeira

que da augusta bandeira empunhada

valeu a pena lutar!

Era muito cedo ainda e a policia repressora do regime estava contabilizando os feitos do dia anterior. Esconderijos não haviam mais, as denuncias se sucediam matraqueadas pelo medo, pela intimidação, pela insegurança de conhecer ou abrigar algum dissidente revoltado. Esse era o clima de Buenos

Aires no final da década de setenta até 1986 quando caiu a ditadura entronizada pelo Golpe Militar. Foram sete anos de horror e seqüestros.

Os acontecimentos deste período nos revelam os abusos cometidos contra a dignidade humana. A partir deste momento, conhecerás duas histórias contadas ao mesmo tempo, intuídas de realidade e ficção. Ambas poderão

ser reais e verdadeiras, bem como ficcionais, simplesmente roteiros fílmicos.

Identifique-as se puder. A escola situada nos arrabaldes da cidade conhecia seu primeiro dia de aulas letivas. Embora boa parte dos alunos já se conhecesse, alguns outros agora pela primeira vez. Alicia, de forma senhorial, cabelos coqueados apresentou-se como professora de história, advertindo-os a respeito da disciplina e maximizando que a história é a memória dos povos. O alarido se fez, visto que o país atravessava um regime arbitrário não desejado pelo povo. Afastada da realidade do momento, mercê de um casamento de satisfação medida, cativa do conforto oferecido pelo marido que bem sucedido nas suas relações e ligações com os homens do governo mal ouvia as vozes das ruas, tampouco se importava com a miséria alheia. Não fosse o professor de literatura acordá-la para o que acontecia, incólume se fazia. Por outro lado, a Maria Eugenia vitima de pais seqüestrados não se reconhecia como filha de Osvaldo e Maria Cristina. Traço algum a levava se identificar com os supostos pais. Questionava-se constante e insistentemente. Cheia de dúvidas e muito incomodada deixa o lar paterno aos dezenove anos. Nesse momento Gaby, filha adotiva de Alicia e Roberto Ibañez comemora seu quinto aniversário num momento de grande euforia com a família e amigos reunidos. O pai ausente se faz. Mais tarde, quando a festa havia terminado Alicia recepciona o drinque ao marido e com blandícia pergunta-lhe da origem da menina. Bem distante dali, num tempo lá trás, ao sul de Buenos Aires na maternidade clandestina da prisão de Olmos nascia Maria Eugenia que foi apropriada indevidamente por um militar da reserva que por sua vez entregaria ao casal que a criara. Seus pais biológicos estão desaparecidos até hoje. Inconformada pela evasiva do marido e em desassossego consigo mesma, visita a amiga Annita e pede-lhe que vá consigo ao hospital, lembrando-lhe que sempre fizeram as coisas juntas, até xixi na escola. Sem sucesso, está diante do guichê do hospital a cata de informações. Empurram-na de um atendente para outro e desacorçoada senta-se a um banco. Entristecida é abordada por uma senhora que bondosamente lhe oferece conforto e a possibilidade de conseguir as informações desejadas. Nada mais que Las Abuelas da Plaza de Mayo. No dia seguinte, começa a examinar os álbuns-cadastro dos seqüestrados, dos desaparecidos, dos mortos, dos exilados e de todos os dos possíveis. Penosamente e com certa amargura no coração, folheia pagina por pagina até que algo familiar a faz pensar. Acudida pela bondosa senhora experimenta a sensação de ter encontrado algo, sua pulsação se acelera e uma temida apreensão toma-lhe conta. Um curto sorriso da Abuela confirma a terrível expectativa. Embaraçada Alicia se posta inerte, o mundo acabara de desabar em sua cabeça. Alguns dias depois, vê-se observada por uma senhora de tristes feições, pesarosa do fardo que a vida lhe impôs. Intranqüila, vai ao centro da cidade encontrar-se com o marido. Da janela do escritório assiste a passeata dos excluídos que cantam:

O que vocês fizeram com os desaparecidos?

O ministério do Exterior e a corrupção

São a grande merda da nação

Que aconteceu com as Malvinas?

Os rapazes jamais voltaram

Não devemos esquecê-los

Por isso temos de lutar

Mergulhada em seu desespero e no limiar do seu esgotamento aceita conversar com aquela sofredora da Plaza de Mayo. Maria Eugenia uma ativista incansável na procura de sua verdadeira identidade peregrina por todos os cantos querendo saber quem são os seus verdadeiros pais. Sua intensa revolta deixa-a incontida e seu apelo finalmente encontra paradeiro quando consegue identificar seus pais no grupo das Abuelas de Mayo. Como é possível que, apesar das traumáticas e terríveis perdas de entes queridos... os familiares dos desaparecidos não apelem à violência ou à vingança como estratégia social? As temporalidades dos acontecimentos, individual e coletivo abrigam este modo de ser. “A abertura de um tempo de espera, ilusão ou esperança, induzido pelo seqüestro, em oposição ao da morte, conjuga-se com... às estratégias e ações políticas de caráter grupal”. Na casa dos Ibañez as coisas já não correm tão bem, o barco começa afundar. Palavras de Annita que supõe Roberto um delator, daí o seu sucesso. A derrocada se anuncia quando a Justiça condena à prisão os pais postiços de Maria Eugenia, bem como do seu seqüestrador. Sem nenhum afeto pela perda declara: “Não guardei lembranças relacionadas a Rivas e Gómez como pais, porque prefiro não me lembrar disso”. A magoa de ter sido roubada de seus pais a fez processá-los. Alicia imersa em seu pensar, recorda a sua infância quando na cadeira de balanço esperava angustiosamente pelos pais que tinham sido mortos num acidente. Essa dolorosa lembrança fez com que avaliasse o sofrimento de Sara, a avó tristonha que a seguia escudada pelo cartaz dos parentes desaparecidos. Convencida de que sua adorável filha era neta de Sara, abandona Roberto e a cena de vida se repete quando vemos Gaby se balançando na cadeira.

Bem, as duas histórias ora narradas são reais, criveis e verossímeis. O traço comum que as ligam é o sofrimento, a dor, o desaparecimento e morte de entes queridos. As circunstancias políticas agravam mais o quadro decorrendo outras mazelas de nossa sociedade contemporânea. O tempo de sofrer de individual presente se faz coletivo na defesa, na busca dos ausentes vivos ou mortos que foram barbaramente presos ou aniquilados por homens de um regime de imposição, totalitário. A sociedade se modifica, se transforma, a descrença, o desamor, a desconfiança viram jargões e a miséria se estende a todas famílias. O animo abatido é a mascara do infortúnio que se abateu sobre um povo. Mas, há que lutar! O sentimento cívico e patriótico ressurge para com destemor clamar por justiça, por liberdade e punição àqueles que não respeitaram os direitos humanos de cada ser.

paulo costa

abril/2008

paulo costa
Enviado por paulo costa em 27/04/2008
Código do texto: T963798
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