TRIBUTAÇÃO NO BRASIL E A CANTIGA DA PERUA

RESENHA

Como se diz no Ceará, a cantiga da perua “é só pior”! Infelizmente, essa é a sensação que ficou após a EC 132 – simbolicamente publicada em dezembro de 2023, dias antes do Natal. Imposto único? Que nada! Serão instituídos três novos tributos que, paulatinamente, substituirão as exações incidentes sobre as relações de consumo atualmente. Que “presente”! Não?!

ARTIGO

Vive-se em sociedade complexa, plural e de riscos, o que espraia efeitos nos diversos sistemas tributários, entre eles, o brasileiro. Hoje, discutem-se os impactos da Emenda Constitucional (EC) 132/2023. Será ela benéfica ou maléfica à economia do Brasil? Eis o que se espera analisar a partir da tipologia de arquétipos.

Pois bem. A EC 132/2023 se propõe a elevar (consideravelmente) a tributação sobre o consumo, produção e circulação (tributação indireta). A título de abertura mental, recorde-se que tributo significa arrecadação impositiva (art. 3º do código tributário nacional) e implica, inexoravelmente, peso morto econômico (algo próximo a uma ineficiência alocativa consentida). Nesse estado de arte, a obrigação de o contribuinte arcar com a exação justa guarda relevância sob pena de descrença até na própria ordem democrática. Alertara Hayek (2010, p. 86):

"Hoje em dia, costuma-se concentrar a atenção na democracia julgando-a o principal valor que está sendo ameaçado. Isso, porém, não deixa de ser perigoso. De fato, essa ênfase desmedida no valor da democracia é responsável pela crença ilusória e infundada de que, enquanto a vontade da maioria for a fonte suprema do poder, este não poderá ser arbitrário. A falta de segurança que tal crença infunde em muita gente contribui sobremodo para a geral falta de consciência dos perigos que nos ameaçam".

A análise de Hayek, da década de 1940, é extremamente atual. É equívoco pensar que ele era contra os regimes democráticos. Constatou apenas ser a democracia – em essência – meio, ou seja, instrumento utilitário a serviço da salvaguarda da paz interna e das liberdades individuais elementares. Liberdades essas que dependem da livre iniciativa para operação. Absolutamente em sentido oposto ao ideal de livre mercado, insere-se o projeto de intervencionismo (dirigismo) estatal materializado pela EC 132/2023. Senão, veja-se:

a) além de repercutir na tributação indireta, a EC 132/2023 também espraia efeitos em parte da tributação direta em relação ao imposto sobre transmissão causa mortis e doação (progressividade); imposto sobre a propriedade territorial urbana (atualização da base de cálculo); imposto sobre a propriedade de veículos automotores (ampliação da incidência tributária, o que englobará embarcações);

b) a contribuição para o custeio da iluminação pública continuará sob a “bandeira” da expansão do serviço em termos de sistemas de monitoramento para segurança e preservação de logradouros públicos.

Destaque-se, ainda, a crível probabilidade de ocorrência de outra “reforma” em relação à majoração da tributação sobre a renda. O cenário atual é desafiador e preocupante. É relevante trazer as reflexões propostas pelo jurista Hugo de Brito Machado (2009, p. 63): “A garantia do cidadão contribuinte de que não sofrerá abusos do governo reside no princípio da estrita legalidade”. Qualquer carga fiscal a incidir, preponderantemente, via tributação indireta (regressiva por natureza) distancia-se de um justo fiscal.

É preciso analisar o impacto macroeconômico da elevação das exações em termos de competitividade do produto brasileiro (interna e externamente), o que parece ter ficado de fora da “reforma”. No que concerne à expansão da carga fiscal, criou-se novo imposto: o IBS (imposto sobre bens e serviços). Trata-se de tributação indireta de competência compartilhada com estados, Distrito Federal e municípios. Imagine-se a confusão que isso gerará!

Hoje, no Brasil, o modelo de federalismo fiscal já gera indesejáveis conflitos distributivos, o que, provavelmente, deverá ser repetido em relação ao IBS. Observe-se que a própria emenda expandiu a competência do Superior Tribunal de Justiça para processar e julgar, originariamente, os conflitos entre entes federativos ou entre estes e o comitê gestor em relação ao IBS.

Chama atenção, entrementes, o campo de incidência do novo imposto: operações com bens materiais ou imateriais e direitos/serviços (provavelmente, entrarão até criptoativos); importação de bens materiais ou imateriais por pessoa física ou jurídica ainda que não seja sujeito passivo habitual do imposto e qualquer que seja a finalidade. Ampla hipótese, portanto, de incidência tributária. Algo como um “cheque em branco” nas mãos do governo (um “freio de mão” na combalida economia nacional).

Outra “novidade” tributária foi a criação da contribuição social sobre bens e serviços (CBS). É interessante registrar que os dois novos tributos incidirão sobre bens e serviços e serão disciplinados por leis complementares. Como são tributos indiretos, admitem repasse ao consumidor via sistema de preços. Portanto, onerarão a cadeia de produção e circulação de bens e serviços da economia. Implicação prática: aumento de preços (inflação).

Além da CBS e do IBS foi criado mais algum tributo? – Sim. O imposto seletivo sobre bens prejudiciais à saúde ou ao ambiente (imposto sobre a produção/extração/comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao ambiente). Será regrado por lei complementar.

Instituto jurídico "sui generis" e confuso da EC 132/2023 foi o "cashback". Na verdade, não representa restituição de tributo, mas um auxílio financeiro à população vulnerável. Os beneficiários serão eleitos por lei complementar. O comitê gestor do IBS, no ato de distribuição do produto arrecadado, deverá fazer a retenção dos valores a serem devolvidos. Algo tanto quanto complexo. Sim ou não?!

Passa-se, agora, a examinar a problemática segundo a metodologia de arquétipos de Jim Dator por suas questões orientadoras. 1ª) Arquétipo de continuação: o Brasil melhorará após os impactos da EC 132/2023? Resposta: não parece crível. O modelo adotado, focado em tributação regressiva, evidencia exatamente em sentido oposto. As exações indiretas serão repassadas via sistema de preços. Logo, onerarão as camadas menos favorecidas da população.

2ª) Arquétipo de colapso: a economia quebrará em face de um ajuste fiscal focado na elevação da receita? Resposta: imprevisível. A partir da leitura fática até o primeiro semestre de 2024, o econômico se encontra fortemente influenciado pelo político. Basta observar as recentes elevações do dólar e a considerável fuga de capitais do Brasil. A única certeza crível no Brasil de 2024 é a incerteza.

3ª) Arquétipo de disciplina: o efeito negativo será abortado e permanecerá o aspecto positivo? Resposta: no modelo delineado pela EC 132/2023, não se detectaram aspectos positivos concretos (apenas abstrações conceituais). O discurso da suposta neutralidade tributária se dissipa em face da elevação da carga fiscal. Os aspectos negativos da regressividade fiscal preponderam.

4ª) Arquétipo de transformação: os atores sociais conseguirão “pensar fora da caixa”? Haverá disrupção? Uma singela resposta já foi ofertada com o resultado eleitoral de 2024. Em 2026, efetivamente, ver-se-á o rumo a ser trilhado. Se a transformação ocorrer pelo recrudescimento do dirigismo estatal, a nação estará a serviço do Estado. Mais: haverá, na real, centralização da arrecadação fiscal no governo federal. A figura do comitê gestor do IBS é por demais eloquente.

Infelizmente, o ajuste fiscal proposto se processou pelo lado da receita governamental. Não se pensou, em momento algum, no lado da oferta privada, o que, certamente, onerará a produção brasileira e repercutirá negativamente no ambiente interno (elevação dos preços) e externo (perda da competitividade do produto nacional no mercado estrangeiro).

A hipertrofia estatal, em termos de elevação da tributação seletiva, implicará atomização do indivíduo em suas escolhas, o que vai de encontro aos preceitos elementares do livre mercado.

Some-se a isso a probabilidade de conflitos redistributivos na operação do IBS com consequente judicialização das demandas, o que poderá ensejar elevação do risco-Brasil (ativismos/subjetivismos judiciais). Elevará (também) o custo de financiamento da máquina pública na operatividade do comitê gestor do IBS (ou o pessoal de lá trabalhará de graça?). Ainda: o IBS e a CBS implicarão indesejável bitributação. E a conclusão da conclusão? – Sim, a emenda saiu pior do que o soneto. Como não?!

REFERÊNCIAS

BRASIL. Emenda Constitucional nº 132, de 20 de dezembro de 2023. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc132.htm>. Acesso em: 12.jul.2024.

_______. Código tributário nacional. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172compilado.htm>. Acesso em: 12.jul.2024.

HAYEK, Friedrich August von. O caminho da servidão. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010.

MACHADO, Hugo de Brito. Os direitos fundamentais do contribuinte e a efetividade da jurisdição. Recife: UFPE, 2009. Disponível em: <https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/4003>. Acesso em: 18.set.2022.

Professora Ana Paula
Enviado por Professora Ana Paula em 04/12/2024
Reeditado em 04/12/2024
Código do texto: T8212007
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