Inversão de valores: o trânsito

Revendo antigos artigos do grande Gustavo Corção, que saíam no jornal "O Globo" nas décadas de 60 e 70, chamou minha atenção este de 20/9/69 sob o título "Assaltos e estacionamentos".

Depois de referir dois assaltos ocorridos em sua rua no Cosme Velho, onde num levaram o carro e no outro ficaram na tentativa, Corção comenta a falta de segurança na cidade - já naquela época - e sugere que era mais arriscado estacionar o carro para uma compra rápida que roubar um automóvel.

"Há assim, em escala decrescente, os seguintes fenômenos: impunidade para os assassinos que assaltam motoristas, simpatia para os quase assassinos que praticam as maiores imprudências, indiferença para os ônibus que sacodem velhos e senhoras grávidas em freadas e arrancos com que se consola o motorista do tédio da vida, desconfiança para com os que dirigem prudentemente, e ódio, perseguição, sede de vingança contra o manso e inofensivo pai de família que encosta furtivamente o carro num lugar baldio, deserto, límpido, onde não atrapalha ninguém, para correr até a banca de jornal. Quando volta como um culpado, é tarde: já encontra o guarda escrevendo."

Corção narra sua própria experiência ao estacionar seu veículo em frente a uma farmácia quando viu aproximar-se a Lei. Explicou que ia só comprar uns remédios e ir embora.

"O mocetão condoeu-se de minha miséria, de minha idade avançada, do aparelho de surdez que acrescenta uma nota cômica à tristeza do resto, e teve um amplo gesto de clemência."

Ao menos naquela vez, Corção conseguiu comprar seus remédios sem ser multado.

Será que essa inversão de valores diminuiu? Não acredito. Anos atrás soube que um ex-colega de trabalho havia sido assaltado por meliantes que lhe levaram o carro. Aí vinha uma patrulhinha e ele acenou. O auto da PM parou. E aí, conforme me contaram, aconteceu uma coisa inacreditável, que bem mostra que os criminosos parecem ter perdido o medo da polícia:

Vendo que a vítima tinha recorrido à patrulhinha, os assaltantes voltaram e fuzilaram o meu colega na frente dos policiais e ainda conseguiram fugir.

Prezado e saudoso Gustavo Corção: infelizmente não posso lhe dizer que o Rio de Janeiro melhorou depois que você se foi.