Humanos deveres, humanos sofreres

O direito, como objeto cultural, é produto humano. Em o sendo, depreende-se, de plano, assimetria informacional da expressão "direitos humanos". Ora, todo direito não será obra naturalmente humana? É chegado o tempo de vencer a perplexidade de provar (por A + B) que a grama é verde! Contudo, como dizer sem dizer?! Na perspectiva de pensar o pensar, como recurso de presença, iniciam-se as reflexões em intertexto com Poe (2021, p. 104-105):

"SONETO À CIÊNCIA.

Ciência! Filha verdadeira dos tempos antigos!

Quem todas as coisas com teus olhos à espreita muda.

Por que oprime o coração do poeta,

Abutre, cujas asas são uma realidade obtusa?

Como ele poderia amar-te? Ou como julgar-te sábia,

Quem não o abandonaria em seu vagar

Em busca de tesouros no céu enfeitado

Embora com asas indômitas consiga planar?

Diana de sua carruagem não arrastaste?

E Hamadríade das florestas tiraste,

Em alguma estrela mais feliz a abrigaste?

E Náiade de suas águas não arrancaste,

O elfo da grama verde, e de mim

O sonho de verão debaixo do pé de tamarindo ceifaste?"

O poema de Edgar Allan Poe perpassou duas guerras de proporções mundiais e, com abertura de mentes e corações, reflete a respeito de uma bandeira tão alardeada hoje: “ciência”. O poeta norte-americano viveu de 1809 a 1849.

Utiliza-se, neste esforço jurídico-literário, o método inspirativo e intuitivo sem ilusão alguma de neutralidade. Só se aspira a questionar o senso comum. Quiçá, propor meditações sobre a necessidade de construção de novo senso comum!

O Direito, objeto cultural, não se pode quedar desajustado da realidade. Adverte Santos (1987, p. 14): “[…] em termos científicos vivemos ainda no século XIX e que o século XX ainda não começou, nem talvez comece antes de terminar”. O discurso aplica-se ao século XXI por certo. De acordo com Santos (1987, p. 40-41):

"[…] essa crise é não só profunda como irreversível; […] estamos a viver um período de revolução científica que se iniciou com Einstein e a mecânica quântica e não se sabe ainda quando acabará […]. Um dos pensamentos mais profundos de Einstein é o da relatividade da simultaneidade".

Da mecânica quântica ao universo das ciências sociais, o princípio da incerteza – de Heisenberg – rompe as certezas do aparente consenso. Vive-se no limiar de uma sociedade de comunicação instável. Que sociedade interativa se está a construir no terceiro milênio? A crise do paradigma dominante convida à reflexão epistemológica do conhecimento dito científico.

Como escrevera Andrade no século passado (1924, p. 02): “Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos livres” (destaque no original). De fato, urge abrir olhos livres! O sentimento de liberdade em face do mundo representa intersecção entre o pensar de Oswald de Andrade e o de Boaventura de Sousa Santos. Aquele, mais otimista em relação ao mundo; este, nem tanto.

Para Santos (1987, p. 14): “[…] estamos de novo perplexos, perdemos a confiança epistemológica; instalou-se em nós uma sensação de perda irreparável tanto mais estranha quanto não sabemos ao certo o que estamos em vias de perder”. Com efeito, paira na humanidade – sobretudo no século XXI – incertezas diversas. É preciso indagar o papel do conhecimento, seus reflexos na vida e na felicidade das pessoas.

Em diálogo com “O Manifesto Antropófago”, conclamou Andrade (1928, p. 05) uma “experiência pessoal renovada”. Esse convite à experimentação dialoga com o novo senso comum capitaneado por Boaventura (1987, p. 38), "sic":

"O comportamento humano, ao contrário dos fenómenos naturais, não pode ser descrito e muito menos explicado com base nas suas características exteriores e objectiváveis, uma vez que o mesmo acto externo pode corresponder a sentidos de acção muito diferentes".

O método das ciências sociais não pode, de fato, quedar-se adstrito (preponderantemente) ao método das ciências naturais. O direito, como objeto social que é, opera com vetores probabilísticos, aproximativos e tanto quanto provisórios. Em intertexto com Santos (1987, p. 51):

"[…] a simplicidade das leis constitui uma simplificação arbitrária da realidade que nos confina a um horizonte mínimo para além do qual outros conhecimentos da natureza, provavelmente mais ricos e com mais interesse humano, ficam por conhecer".

Detectada a crise no paradigma dominante, o sociólogo português propõe abordagem mais especulativa, produto de síntese pessoal criativa e da capacidade de surpreender-se em face do mundo (de arrepender-se de quando em vez). Eis o que denominou paradigma emergente. Essa ideia de construção do paradigma emergente muito se relaciona ao raciocínio ora desenvolvido.

Nas palavras de Santos (1987, p. 60): “Eu falarei, por agora, do paradigma de um conhecimento prudente para uma vida decente”. Para ele, à medida que as ciências naturais se aproximam das ciências sociais, há aproximação das humanidades. Essas aplicações do conhecimento humano, portanto, não se referem a conjuntos disjuntos.

Boaventura deseja expressar que não há natureza humana porque toda a natureza é humana. Em tempos de coisificação da humanidade, o pensamento do autor exprime grito no deserto. Mais: defende que o conhecimento é local e total. Sendo assim, há que se ter imenso cuidado com a tal da especialização. No paradigma emergente, o conhecimento contempla horizonte de totalidade universal sem olvidar os projetos de vida locais.

Segundo Santos (1987, p. 85), sic: “No paradigma emergente, o carácter autobiográfico e autorreferencial da ciência é plenamente assumido”. Há contemplação. Algo mais próximo da criação literária e/ou artística. Com efeito, o conhecimento é sobre as condições de possibilidades – transgressão (ou pluralidade) metodológica (discursiva).

Nesse direcionamento de retas ao infinito, erige o ponto de mutação: pensar diferente para construir paradigmas emergentes na compreensão dos humanos deveres (humano sofreres).

Em que pese a considerável sistematização dos sistemas global e regional de proteção dos direitos das gentes, graves violações aos direitos do ser humano persistem na história mundial, sendo o século XX triste expoente nesse sentido. O século XXI, por seu turno, além de ameaças biológicas, parece apostar em conflitos bélicos e informacionais.

O homem, nos últimos tempos, intensificou a capacidade de autodestruição: duas Grandes Guerras Mundiais, conflitos localizados associados a problemas econômicos, políticos, religiosos, sanitários e tecnológicos. Pessoas são jogadas umas contra as outras. Dissemina-se pânico em nível global. Questiona Gomes (2022, p. 26):

"Do modo como as coisas transcorrem, fica muito difícil acreditar no futuro da humanidade e no discurso do bem comum. Além disso, há flexibilizações de ordem semântica, na Carta das Nações Unidas, pela utilização de conceitos jurídicos indeterminados. A quem isso tudo interessa?"

Pois bem. Após a Segunda Grande Guerra Mundial, definiram-se sistemas de proteção dos deveres humanos: a) sistema global (ligado às Nações Unidas); b) sistemas regionais (interamericano, europeu e africano).

O sistema global é regrado por documentos gerais e especiais. A título de ilustração (não exaustiva): Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH) – possui efeitos enunciativos (não é tratado); Carta das Nações Unidas; Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos; Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Em que pese não materializar tratado, a DUDH repercutiu em relevantes documentos consectários. Para Lorenzon (2017, p. 80):

"Esse processo resultou no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (ICCPR) e no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (ICESCR). Ele veio a ser justificado por um argumento pragmático, mas que refletia também as tensões que se escalavam na Guerra Fria: enquanto a primeira tratava de direitos civis e políticos que somente requeriam abstenções, a segunda demandava ações afirmativas de implementação".

A referência ajuda a entender o porquê da diferenciação entre os direitos individuais (primeira dimensão), como negativos (obrigação de não fazer); e os sociais (segunda dimensão), como positivos (aplicáveis a grupos/classes – obrigações prestacionais). Tudo isso retrata bifurcação operada pela filosofia liberal versus a perspectiva coletivista – ou dirigista ou intervencionista (socialismo).

Agora, sobre os documentos especiais (rol não taxativo), exemplificam-nos: Convenção pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial; Convenção pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher. Tanto as convenções especiais quanto as gerais incluem uma série de mecanismos de proteção.

Os sistemas regionais de proteção também são estruturados por documentos gerais e especiais. Um dos traços marcantes entre os mecanismos regionais e o global de proteção reside no fato de o global ser aberto à adesão de (praticamente) todos os países. Os regionais, abertos somente à adesão dos países de cada região, visando a complementar o sistema global, tudo em prol da tutela de distintas dimensões dos humanos direitos.

Ínsitos ao ser, têm o propósito de proteger as pessoas do abuso de poder estatal. O princípio da dignidade da pessoa – balizador dos direitos fundamentais – implica diretiva imprescindível para que o ser humano viva condignamente. Os direitos fundamentais dialogam, interagem. Seus conteúdos se vinculam. Não podem ser procrastinados.

Os direitos fundamentais nascem da Constituição e/ou de Leis Básicas. Servem de pauta ao legislador e às instâncias que o aplicam. Uma vez estabelecidos, incorporam-se ao patrimônio jurídico da cidadania. Não podem ser suprimidos (vedação ao retrocesso).

Humanos deveres (perspectiva internacional) ou fundamentais (abrangência interna) trazem ao debate a capacidade jurídica internacional do indivíduo – reconhecimento de sua condição de sujeito ativo no direito internacional, o que implica a possibilidade de defesa pessoal perante organismos internacionais.

Saliente-se que, após o advento da Convenção de Nova Iorque, abriu-se a possibilidade de que, em se tratando de pessoa com deficiência, o sujeito busque tutela jurídica diretamente em organismos internacionais. Há pleitos individuais, portanto, de significativa repercussão internacional.

Pleitos esses que convergem ao reconhecimento da capacidade jurídica internacional da pessoa natural, havendo a possibilidade de acesso do indivíduo ao sistema internacional de proteção dos deveres humanos na esfera das Nações Unidas, cujo compromisso maior, teoricamente, consiste na manutenção da paz e da segurança internacional.

Contraditoriamente, cada vez mais, o mundo se mostra inseguro em razão de diversos conflitos religiosos, econômicos e políticos. Quiçá, sem o sistema das Nações Unidas, a problemática da manutenção da paz (e da segurança internacional) estivesse em cenário mais caótico.

Pensando em nível macro, a responsabilidade internacional resta associada à observância a padrões normativos internacionais protetivos, o que deflagra (teoricamente) canais de responsabilização/reparação em nível externo. Entretanto, são praticamente inexistentes instrumentos internacionais com enfoque na reparação às vítimas.

As Convenções de Genebra (e protocolos adicionais) – em que pese versarem sobre a punição dos responsáveis por violações a suas diretivas – não se preocupam com as vítimas em sentido estrito. Na esfera internacional, usualmente, as reparações são pleiteadas pelos Estados que sofreram violações a normas humanitárias – não pelas vítimas diretas. Restará a elas o recurso a mecanismos de proteção disponibilizados no confuso sistema convencional dos humanos direitos.

O sistema de tutela dos humanos direitos, enfim, é integrado por normas de natureza convencional, consuetudinária, principiológica e por conceitos jurídicos indeterminados, a exemplo de dignidade da pessoa.

Mesmo que não se detenha adesão voluntária estatal, identificada ameaça à paz/segurança internacional, caberá ao plexo de órgãos das Nações Unidas, especialmente à Assembleia Geral, expressar a desaprovação da comunidade internacional, o que implica efeitos morais/políticos.

Humanos deveres sim para humanos sofreres! Finaliza-se, assim, a reflexão de modo intencionalmente inacabado, na verdade, com o convite proposto por la Boétie (2017, p. 79):

"Aprendamos algum dia, portanto, aprendamos a fazer o bem; levantemos os olhos ao céu, seja por nossa honra, seja pelo amor à virtude, ou, para melhor dizer, pelo amor e pela honra de Deus todo-poderoso, que é inegável testemunha de nossos feitos e justo juiz de nossos erros".

Para ele, a verdade não é um paradigma mensurável por causa (ou por conta) da maioria. Maioria essa, não raro, adepta à servidão voluntária. A verdade é e ponto final. Os entendedores entenderão: direitos humanos para humanos direitos.

Referências

ANDRADE, Oswald de. Manifesto antropófago e manifesto da poesia pau-brasil. 1924. Disponível em: https://www.ufrgs.br/cdrom/oandrade/oandrade.pdf. Acesso em: 24 set. 2022.

BOÉTIE, Étienne de la. Discurso sobre a servidão voluntária. São Paulo: Edipro, 2017.

GOMES, Ana Paula de Oliveira. Democracia, qualificação dos interlocutores e orçamento participativo. Revista do Instituto do Direito Brasileiro (RIDB), Lisboa: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, nº 11, p. 6.687-6.708, 2012.

_______. Humanos deveres. Natal: Autora, 2022.

_______. Na estrada de Damasco. Natal: Autora, 2022.

LORENZON, Geanluca. Ciclos fatais: socialismo e direitos humanos. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises, 2017.

POE, Edgar Allan. O corvo e outros poemas. São Paulo: Lafonte, 2021.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. São Paulo: Cortez, 1987.

Professora Ana Paula
Enviado por Professora Ana Paula em 17/07/2024
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