* Mantiqueira 7 Artes - Viva Adélia Prado !

Revista de Arte e Cultura

Adélia Prado prepara livro inédito e celebra

premiações pelo conjunto da obra

Aos 88 anos, poeta mineira foi laureada com os prêmios Machado de Assis e Camões,

e deve lançar “O Jardim das Oliveiras” em breve

Por Raphael Vidigal Aroeira

Foi pela televisão – esse veículo quase obsoleto em tempos de internet –, há mais de uma década, que nossos olhares se cruzaram e tive a audácia, própria da juventude, de batizar o poema com esse nome sagrado: “Adélia Prado”, que dizia: “o amor é a melhor resposta que nós podemos dar/ todos os dias, todos os dias/ um pingo de mel/ um rastilho de pólvora/ o pincel, o lápis, a partitura/ a pintura, a prosa, a música/ o amor é a resposta/ ou o amor é a poesia?”. A reportagem em tom de crônica se justifica pela proximidade que Adélia estabelece na comunhão com as palavras, e logo nos sentimos íntimos da poeta, como se não houvesse tempo nem espaço a nos separar dos versos.

“Temos muito pouco tempo para expressar a dor de viver. Sofrer é sofrer. A diferença é que, aos 20 anos, se sofre com mais lirismo, mas aos 88 é preciso muita fé pra dar conta”, confessa Adélia Prado, que, octogenária, faturou, pelo conjunto da obra, dois prêmios que cravaram o seu nome definitivamente na história: o Machado de Assis, concedido pela Academia Brasileira de Letras; e o internacional Prêmio Camões, o mais importante da língua portuguesa, unindo-se a José Saramago, João Cabral de Melo Neto, Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Antonio Candido, Lygia Fagundes Telles, Mia Couto, Chico Buarque e os conterrâneos mineiros Autran Dourado, Rubem Fonseca e Silviano Santiago, tornando-se a primeira mulher das Gerais com a honraria.

Sobre Machado de Assis e Camões, que intitulam as premiações recebidas, as palavras, poucas e precisas, parecem condensar a insólita mistura que Adélia tão bem rumina em seu labor literário, numa profanação embebida em ardor religioso: “São dois monstros sagrados de nossa língua”, resume a poeta.

Distante das publicações desde “Miserere” (2013),

Adélia encontrou, vasculhando gavetas, poemas da mocidade

que a surpreenderam pelo viço, mantendo aceso um sentido

que não se abalou, a despeito da passagem do tempo.

Para ela, apenas mais uma prova do mistério inesgotável da nossa existência.

“Pouca coisa mudou. O poeta já nasce velho”, constata Adélia Prado, que, até o final do ano, deve colocar na praça seu aguardado “O Jardim das Oliveiras”.

O título do livro é uma referência ao local bíblico onde Jesus Cristo orou na véspera de sua crucificação, conhecido, em hebraico, como Getsêmani, quando, de acordo com o evangelho de Lucas, a angústia profunda sentida pelo filho de Deus teria transformado seu suor em “gotas de sangue que corriam até o chão”.

A história não deixa Adélia se afastar de um mundo em conflitos bélicos, com o genocídio do governo israelense contra os palestinos na Faixa de Gaza, dominada pelos terroristas do Hamas, e a invasão da Ucrânia pela Rússia que explicitou a intervenção dos países da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) na guerra. “A maior tragédia atual é a desumanização. O empobrecimento do espírito. Imigrantes e minorias continuam sendo as maiores vítimas. É um cenário desanimador”, lamenta, contrita, Adélia Prado.

Graça

Quando recebeu a notícia das premiações, Adélia postou um vídeo em suas redes sociais em que, além de agradecer, demonstrava o seu apreço pela palavra, que não pode ser desperdiçada, ou, como melhor dito pela poeta, “a palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda, foi inventada para ser calada”, ecoando um ensinamento do filósofo Nietzsche: “Tudo aquilo para que temos palavras é porque já ultrapassamos”. Mas Adélia não disfarça a alegria pelo reconhecimento. “É uma vitória da poesia e da língua portuguesa, esse grande tesouro que possuímos…”, comemora.

Foi o coroamento de uma trajetória que começou oficialmente no mundo das letras em 1976, com a publicação de “Bagagem”, quando Adélia contava 40 anos e não deixava de espantar-se. “Vinte anos mais vinte é o que tenho. Nesse exato momento do dia vinte de julho de mil novecentos e setenta e seis, o céu é bruma, está frio, estou feia, acabo de receber um beijo pelo correio. Quarenta anos! Não quero faca nem queijo. Quero a fome”, escreveu ela, na ocasião. A estreia contou com um apoio ilustre, de ninguém menos que Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), responsável por alardear aos quatro ventos o talento da iniciante quando teve contato com manuscritos.

“Ter sido acolhida por Drummond, antes mesmo de publicar, foi o meu primeiro prêmio”, afiança Adélia. Ela afirma que foram “os poetas escolares” que a “despertaram” para o encanto das palavras, ainda no período ginasial, e cita Olavo Bilac (1865-1918) e Casimiro de Abreu (1839-1860) como referências, representantes, respectivamente, do parnasianismo e do romantismo na literatura brasileira. Em 1978, Adélia publicou seu segundo livro, “O Coração Disparado”, traduzido para o espanhol, convertendo-se, ela mesma, em ícone para outros autores, como o também mineiro Rubem Alves, natural de Boa Esperança, que a exalta em “A Festa de Babette”, em que analisa os prazeres.

“A Imagem Refletida” e “Cacos para um Vitral”, adaptação de um romance, marcaram suas incursões pelo balé. Já Fernanda Montenegro a levou ao teatro com “Dona Doida: Um Interlúdio”, em 1987, conferindo uma concepção dramatúrgica a textos da escritora, que aventurou-se na prosa, pela primeira vez, com “Solte os Cachorros”, de 1979, reunindo contos. Com “O Tom de Adélia Prado”, sua poesia ganhou trilha musical de Mauro Rodrigues, em 1999.

O público infantil também foi contemplado com “Quando eu Era Pequena” e “Carmela Vai à Escola”, nos anos 2000. O encontro foi descrito por Adélia em ritmo de poesia: “Minha mão tem manchas,/ pintas marrons como ovinhos de codorna./ Crianças acham engraçado/ e exibem as suas com alegria,/ na certeza – que também já tive – / de que seguirão imunes”. Ela, então, arma um circo para descansar.

E arremata: “Contra todo artifício, nosso olhar nos revela./ Não perturbe inocentes, pois não há perdas/ e, tal qual o novo,/ o velho também é mistério”. Hoje, Adélia segue na Divinópolis onde nasceu. “A cidade da infância responde por nossas experiências, orienta os nossos afetos de modo determinante, não há como escapar a isso”, finaliza.

Saskia Bitencourt
Enviado por Saskia Bitencourt em 08/07/2024
Reeditado em 10/07/2024
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