Mantiqueira 7 Artes - Absurdo: Livro de Ziraldo é proibido em Conselheiro Lafaiete

Revista de Cultura e Arte

Cidade de MG proíbe livro de Ziraldo nas escolas e levanta discussão sobre ensino racial

Secretaria de Educação municipal disse que livro é “recurso valioso”,

mas atendeu reclamações dos pais e de pastor evangélico

Por Isabela Abalen

Livro trata de uma amizade inter-racial

O livro infantil “O Menino Marrom", do premiado escritor Ziraldo, foi proibido de ser aplicado nas salas de aula das escolas municipais de Conselheiro Lafaiete, na região Central do Estado. A prefeitura da cidade publicou uma nota oficializando a suspensão do exemplar nesta quarta-feira (19 de junho). O motivo, segundo a Secretaria de Educação de Lafaiete, seria a repercussão negativa do conteúdo do livro entre pais e familiares dos alunos.

“O Menino Marrom” conta a história de uma amizade entre duas crianças, uma negra e outra branca. Publicado em 1986, o livro é usado atualmente como forma de abordar o tema da diversidade racial e o enfrentamento ao preconceito entre alunos do ensino fundamental. A prefeitura de Conselheiro Lafaiete afirmou que o exemplar “aborda de forma sensível e poética” a amizade interracial. “Os personagens, apesar de suas diferenças, desenvolvem uma amizade genuína e se divertem juntos”, disse por meio de nota.

Mesmo afirmando que o livro é um recurso valioso que “facilita a compreensão de conceitos como racismo e empatia”, a Secretaria de Educação do município cedeu à repercussão negativa entre os familiares. “Lamentamos que tenha havido interpretações dúbias acerca do mesmo”, publicou o Executivo. A suspensão de “O Menino Marrom” ocorre após áudios de pais de alunos circularem nos grupos de responsáveis questionando trechos específicos da história.

Reclamações

As reclamações são voltadas para ao menos duas partes da história do livro. Uma delas envolve um pacto de amizade, em que os personagens simulam uma ligação entre eles por meio de uma tinta azul. O pastor Chrystian Dias gravou um vídeo nas redes sociais com posicionamento contrário ao uso da obra literária nas escolas de Conselheiro Lafaiete.

Ele afirma que pais o procuraram para falar sobre o trecho que, nas palavras dele, “induz as crianças a fazer pacto de sangue, cortando o punho”. Em outro trecho, segundo ele, o livro incentiva as crianças a “desejar o mal para as pessoas”. A partir da publicação, que orientava os pais a procurarem os gestores para rever o uso da obra no ensino, a prefeitura tomou a decisão.

Avaliação de especialista

Na avaliação do sociólogo e especialista em desigualdades raciais, João Saraiva, a suspensão da obra é uma perda para as crianças, que teriam um exemplo de autoestima negra em mãos. “‘O Menino Marrom’ é usado há muitos anos para falar de maneira leve e poética sobre as diferenças raciais. Cor de pele, formato de boca, nariz, é leve e elogioso. Uma obra que apresenta de uma forma muito positiva os traços negros e funciona para elevar a autoestima das crianças”, analisa.

Saraiva reforça que o ensino da cultura afro-brasileira nas escolas é lei federal (Lei 10.639), e o livro do Ziraldo, junto de outros exemplares, como “Menina Bonita do Laço de Fita”, de Ana Maria Machado, e “A bonequinha preta”, de Alaíde Lisboa, assume essa função de abordar o tema de forma leve. “Censurar nunca é o caminho certo. Se apareceram questões entre os pais, seria um momento de tratar essas dúvidas de forma consciente, e não dispensar o livro dizendo que ele é complexo, porque ele não é”, afirma.

O especialista provoca ainda uma discussão sobre os tipos de livros que se tornam alvo nas instituições de ensino. Segundo ele, algumas referências clássicas com expressões racistas, que teriam motivo para a suspensão, continuam sendo estudadas em sala de aula. “Podemos citar, por exemplo, textos de Monteiro Lobato, em que a personagem Tia Nastácia é discriminada e diminuída. Por que ele continua como material didático, mas Ziraldo é proibido? Por que um livro positivo gera tanto incômodo, mas falas raciais hiper negativas não?”, questiona.

Apesar da prefeitura dizer que tomou a decisão após pedido de pais, a proibição do uso da obra nas escolas não é comemorada por todos. Para um pai, que pediu para ter a identidade preservada, o sentimento é de “revolta”. Ele acusa a prefeitura de agir de maneira “imatura”. “Perdemos a chance de debater sobre”, diz.

Readequação da abordagem pedagógica

A prefeitura de Conselheiro Lafaiete afirmou que vai readequar a abordagem pedagógica que era feita com o livro do Ziraldo. “A Secretaria compreende ser necessário momento de diálogo junto aos responsáveis para que não sejam estabelecidos pensamentos precipitados e depreciativos em relação às temáticas abordadas”, informou por meio de nota.

Conforme a Secretaria de Educação municipal, a escolha das obras literárias segue o planejamento pedagógico nacional e se baseia no desenvolvimento integral dos estudantes, “entretanto, cabendo ao momento melhor análise e reflexão sobre o uso institucional da obra em questão”, comentou.

Saskia Bitencourt
Enviado por Saskia Bitencourt em 20/06/2024
Reeditado em 22/06/2024
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