Enfim, Cuba (IV)

continuação...

SANTIAGO:

Quando a gente era adolescente, tomávamos a jardineira para visitar as cidades vizinhas. A última vez eu já estava com meus vinte anos. Fui no casamento de um amigo. O ônibus imundo, pegando gente, galinhas, porcos e cabritos pelo caminho. O avião que faz o vôo doméstico para Santiago é bem parecido. Um cargueiro adaptado, sem janelas, cadeiras quebradas e o que me assustou: pneus carecas. Rezei. No ar, enquanto subíamos, as nuvens entravam como uma cortina de fumaça. Graças a Deus chegamos. No aeroporto a primeira prova da eficiência cubana. Não havia ninguém da companhia de turismo nos esperando para o traslado. Inadmissível. Ficamos quase uma hora esperando, e nada. Resolvemos tomar um táxi. No caminho o motorista recebe uma chamada pelo rádio: - dona Sandra e senhor Antônio estão no seu táxi? o motorista parou o veículo. Nós confirmamos nossos nomes. Pediu para ver nossos documentos. Mostramos. Ficou tudo explicado. O responsável pelo nosso traslado havia se atrasado em apenas uma hora. Pediu para que o motorista desligasse o taxímetro. Seria tudo resolvido no dia seguinte. Afinal o patrão era o mesmo. Continuou a discussão. O motorista queria saber quem pagaria os dois dólares rodados. Sandra, já nervosa, interferiu: - eu pago! Vamos embora!

Assim resolvido. Chegamos no hotel, de onde não saímos nessa primeira noite, pois estávamos muito cansados. Apenas um mojito no bar.

Dia seguinte fomos para o centro logo cedo. Santiago nos apresenta muito mais pobre do que Havana. No centro, quase tudo fechado. Perguntamos ao motorista o por que. Resposta simples: - é domingo.

Por acaso chegamos no “La Trova”, um lugar destinado a cubanos e turistas para ouvir música. Bem simples. Cadeiras se ajuntando numa sala, com os músicos à frente e entre estes e as cadeiras um pequeno espaço para dança. Ao lado, uma loja de souvenirs e nos fundos um bar. Sandra ficou escolhendo CDs. Fiquei de lado, afastado. De repente três meninas se aproximam de mim. Uma delas, como quem não quer nada, vai aproximando sua mão da minha. Encosta. Faz uma pergunta: - espanhol? Respondo que não. Ela vai se apertando em mim. Não resisto: sussurro imitando um grito para Sandra: - Socorro, estou sofrendo um assédio sexual! Ela não entendeu. Continuou a ouvir as gravações, agachada atrás do balcão. Sou obrigado a sair de perto. A cubana me segue. Aproximei-me da Sandra e a abracei. A cubana nem ligou, ficou sorrindo para mim, mostrando a ponta da língua.

Sinto vontade de fumar. Meus cigarros acabaram. Procuro e não vejo um único lugar onde possa comprar um maço. Que vício terrível. Acabo localizando uma cafeteria. Na verdade, uma pequena porta, escura, só freqüentada por cubanos. Peço os cigarros. Só tem o “Popular”, fumo negro, sem filtro, embalagem branca com letras azuis. Horrível de aparência. Penso: - vamos experimentar. Apanho o maço e tiro uma nota de um dólar para pagar. A senhora idosa, atrás do balcão, não aceita. Quer um peso. Como fazer? Já tinha aberto o maço. Insisto. Ela taxativa: - não vendo. Um rapazinho vem em meu auxílio. Informa à senhora que ela pode receber vinte e cinco centavos de dólar e ainda é muito. Ela fica brava com ele: - por que não vende você? Eu não vendo. O rapazinho paga para mim e eu lhe dou o dólar. Tudo acertado. Creio que a senhora ainda não acredita que o cubano já tem acesso ao dólar. Ela deve ser do tempo em que isso era proibido e não se atualizou. Acendo o cigarro e vem o acesso de tosse. Ótimo. Não vou fumar.

Na praça, frente à igreja, um cubano me fala ao ouvido: - cuidado com a carteira!

Vi, no dia seguinte, no mesmo local, meninos vendendo relógios e outros objetos a pessoas mais velhas, que ficavam encostadas nas paredes. Pode ser que não, mas para mim pareceu que eram trombadinhas negociando com receptadores. Igualzinho ao que se vê no Brasil.

Entramos na Igreja da Virgem do Cobre. Na porta, velhos mendigos com canequinhas nas mãos. Um menino grita pedindo trocado, apontando para a mãe em uma cadeira de rodas. Não são muitos os pedintes, mas a revolução ainda não conseguiu acabar com essa chaga. Será que um dia conseguirá?

Nesse domingo, com a cidade vazia, perguntamos à motorista de um coco, onde estava o povo. Ela respondeu: - todos estão na praia.

O coco é um veículo criado pelo cubano. Trata-se de uma moto triciclo, italiana, com uma estrutura redonda de fibra de vidro, em forma de ovo, que serve para transportar até três passageiros. Também é estatal.

Se todo mundo estava na praia. Vamos também para a praia.

A piloto do coco nos explicou que havia uma bela praia retirada, onde poderíamos ficar o dia todo, pagando quinze dólares cada um, mas poderíamos comer e beber o que quiséssemos, estava tudo incluído. O local era conhecido como “Bucaneiro”. Topamos o programa. Após rodar uns vinte quilômetros, chegamos. Já estávamos amigos da piloto. Convidamos ela para ficar. Muito alegre, ela aceitou.

O local é, na verdade, um hotel, com chalés e apartamentos, piscina, bares, restaurantes e praia particular. Além da comida e bebida, pode-se fazer também pesca submarina ou mergulhos com equipamentos, tudo incluído no preço. Na portaria, pedi ingresso para três. O recepcionista coloca uma pulseira de plástico em mim e na Sandra, mas diz para a piloto: - A senhora não! Cubano não pode entrar com turistas!

Quis brigar. Fiquei puto da vida com o Fidel. A coitada estava tão alegre!

Argumentei: - nós então também não vamos entrar!

A piloto apaziguou: - Pode deixar. Às seis horas eu volto para buscá-los e saiu de perto.

Entramos e, depois de um breve reconhecimento do local, fomos diretos para o restaurante.

Surpresa! Quem estava lá dentro, almoçando? A piloto. Pensei que tivesse conseguido entrar “pela esquerda”, como havia dito o César. Mas não, ela tinha direito ao almoço, embora não pudesse ficar ali naquele dia. Era dia em que estava trabalhando.

A Sandra não bebe álcool e eu, sem parceiros, bebo pouco. Mas, quando tenho companheiros, sou imbatível. Ficamos amigos de um casal de cubanos que estava ali hospedado. Ele tinha direito ao “estímulo”, ou seja, a um descanso de cinco dias naquele local. Tudo por conta do Estado. Eram pessoas bastante simples. O Roberto, que ao que me pareceu já havia ingerido algumas cervejas, me convidou para ir ao bar: - tudo já está pago. Pode beber a vontade. Pedi uma cerveja, aliás muito boa a “Cristal” cubana, e uma dose de rum para quebrar o gelo. Roberto ficou espantado com meu pedido. Pediu apenas cerveja. Depois passou a me imitar. Coitado! Quase foi à lona. Ficou me ensinando a dançar “salsa”.

A Sandra quem explorou bastante a cubana. Aprendeu muito sobre a ilha. E aqui deve ser dito: Eu falo espanhol. A Sandra não fala. No entanto, ninguém entendia o que eu falava e eu também pouco entendia o que diziam. A Sandra entendia tudo e todos a entendiam. É muito interessante. A cubana contou das novelas brasileiras. Sabia muito mais do que nós. Mas ambos se fecharam, até mesmo o Roberto, que estava chumbado, quando perguntamos sobre política. Desconversaram, mas sempre de forma simpática.

Por volta das seis horas, começamos a nos despedir. A piloto deveria chegar logo.

Falei para o casal: - se a piloto não chegar, eu alugo uma bicicleta para ir embora.

Eles, não entendendo que eu estava apenas brincando, fizeram cara de preocupados. Roberto disse: - não! É perigoso!

Dei corda: - não, não creio que haja perigo. Sou muito forte.

Tentaram de toda forma me convencer a não ir de bicicleta. Eu insistindo. Roberto pediu licença: - volto já. Espere um pouco.

Voltou com um canivete enorme na mão. – Se você for mesmo de bicicleta, leve isto!

Neste momento chegou a piloto. Veio com sua filha, uma bonequinha negra de três anos. Encantadora. Roberto ficou aliviado. Prometemos voltar no dia seguinte, mas cadê tempo? A gente quer conhecer tudo. Foi uma pena, pois nem pegamos o endereço deles. Mas brasileiro é assim mesmo: marca um compromisso e não cumpre. Talvez os cubanos também sejam assim.

Em Santiago conhecemos vários outros cubanos. Todos muito simpáticos, alegres, prestativos e conversadores. Mas todos desconversando quando tocávamos em política.

Numa das noites em que estávamos perdidos pelas ruas, conhecemos o Luizito, motorista de táxi clandestino, um chevrolet verde, todo amassado, 1950. Depois de rodarmos por diversos locais já éramos íntimos. Ele se abriu:

- Isto aqui é uma merda. Todo dia tem gente fugindo para Miami.

- E vocês não falam nada?

- Se falar eles prendem a gente. Algemam. A gente tem medo de falar.

Aqui não tem oposição. Ou é a favor do Fidel ou vai para a cadeia. Não tem escolha.

- Mas você não acha que está havendo uma abertura?

- Que nada! O homem não deixa o poder de jeito nenhum. Está pior do

que o Moisés, que ficou quarenta anos rodando o deserto atrás da terra prometida e o povo sofrendo.

Em Havana o César havia nos dito que acreditava em uma abertura, e que esta teria de ser lenta e gradual, em benefício do povo. Essa conversa pareceu-me já ter ouvido no Brasil anos antes.

Visitamos vários museus da cidade. Em todos muitas mulheres para atender. Praticamente não fazem nada. É muita gente para pouca função. O primeiro foi o Bacardi. Pagamos o ingresso na porta e uma senhora negra nos conduziu, dando explicações sobre os quadros e de como foram adquiridos. Simpática, como são todos cubanos, começamos a conversar sobre o carnaval. Em Santiago ele ocorre no mês de julho. De acordo com ela, dura dez dias, e ninguém faz nada nesse tempo. Nos convidou para voltarmos nessa época e disse que poderíamos ficar na sua casa. Disse morar num sobrado e que o desfile transcorria sob sua janela. Como são amigáveis esses cubanos! Acabamos de nos conhecer e já coloca a sua casa à nossa disposição! Que gente amável! Parou diante de um óleo e disse: - esta é a Carmem Miranda. Fiquei boquiaberto. Sandra disse para ela que a cantora era do Brasil, mas que tinha nascido em Portugal. Ela não sabia, pensava que era cubana. Reverenciada pelo povo. Despedimo-nos com beijos. Ainda sem experiência, não lhe dei gorjeta alguma. Na outra ala do museu, onde existe uma múmia egípcia, a cicerone com jeito de espanhola foi educada, mas não tão amável quanto a outra. Deu-nos todas as explicações e, quando nos despedimos, simplesmente perguntou: - não tem uma propina? Dei a ela um dólar, arrependido de não ter dado nada para a outra.

continua...