Enfim, Cuba (III)

A VIAGEM

Discuti muito com a Sandra. Ela queria ir para a Portugal e Espanha. Tínhamos quinze dias de férias. Passamos a folhear revistas de turismo. De repente deparo com um anúncio sobre Cuba. O sonho de visitar a ilha de Fidel há muito já estava esquecido, armazenado em algum compartimento do cérebro. Convenceu-me o preço. Acabei também convencendo a companheira, mas fui vencido quanto à organização do roteiro e à qualidade dos hotéis. Cedi nessa parte.

Nosso roteiro seria: quatro noites em Santiago, três noites em Varadero, duas noites em Cayo Largo e o restante em Havana.

Com as passagens e reservas, embarcamos em São Paulo. O velho avião DC-10 segue para Buenos Aires e depois direto para Havana, com uma parada inexplicável de uma hora em Varadero. A rota aumenta em seis horas o percurso.

Disse ser inexplicável o pouso em Varadero porque esta cidade dista apenas 140 quilômetros de Havana. Poucos passageiros descem ou apanham o avião. Seria muito mais prático pousar direto na capital e transportar estes poucos por ônibus ou vans. Haveria muita economia com decolagem e pouso.

No aeroporto internacional dessa famosa cidade balneária o primeiro choque. Sinto necessidade de ir ao banheiro. Na porta uma mulher entregando pedaços de papel higiênico, que enrolava em suas próprias mãos. Tive que dar um dólar por um pedaço. E sabe-se lá onde esta mulher tinha colocado as mãos! Teria as lavado antes? As instalações sanitárias um tanto precárias. Fiquei com vontade de escrever no meu portunhol: “em los aeropuertos de la vida, jamas vi casa de baños assi, no sey si yo cago nela, o si ela quien caga em mi.” Só não o fiz porque não tinha lápis ou caneta. E também por não ser uma coisa educada.. Mas que a vontade foi grande, isso foi.

Nosso destino era Santiago, para onde o avião decolaria somente às 19 horas. Tínhamos, descontado o tempo de espera no aeroporto, pelo menos cinco horas na capital de Fidel. Resolvemos tomar um táxi para percorrer a cidade.

O agente de viagens nos apresentou a um mulato alto, de olhos claros, o César. Ele nos levaria ao passeio.

César nos deu uma aula de história e de sociologia política cubana. Muito simpático, iniciou a conversa num inglês britânico. Ligou o taxímetro do carro francês, semi novo, o ar condicionado e partiu. Pedi a ele para falar em espanhol, seria mais fácil a comunicação. Ele abriu um sorriso e disse: - antes que me perguntem, já vou dizer. Em Cuba não existem analfabetos. Todos tem direito à saúde. Nossos médico são muito eficientes. Tudo aqui é estatal. Eu sou empregado do Estado. Só são particulares os carros velhos. Tudo é de todos. Agora, me perguntem se eu sou a favor? Eu respondo: - sou contra. Respeito a revolução, foi uma coisa muito bonita. Mas o Fidel já deveria ter ido embora há muito tempo.

Já na estrada começamos a ver carros da década de cinqüenta, caindo aos pedaços. Sandra, habituada com o Brasil, faz uma pergunta : - aqui é obrigado a usar o cinto de segurança?

Olhei para ela com um sorriso debochado, apontando para os calhambeques que cruzávamos.

César respondeu: - não há cintos para todos. Já tentaram uma lei nesse sentido. Também houve uma lei para obrigar aos motociclistas a usarem capacetes, mas não há capacetes para todos. Ser fritado no inferno socialista é uma delícia. Um dia falta azeite, no outro dia falta óleo, no outro não tem fogo. Falta tudo.

Passou a falar sobre a educação. Sandra perguntou: - e você, estudou o que?

- Eu sou engenheiro eletricista.

Curioso, indaguei: - Mas não há emprego na sua área de formação?

- Claro que existe! E muito.

- Mas por que você está dirigindo táxi?

- Pela propina. Só quem trabalha com os turistas têm acesso à propina. Os

Outros, coitados, têm apenas o salário que o estado paga. Uma miséria. A propina que eu ganho me dá direito a muitas coisas. Por exemplo, eu tenho antena parabólica em casa. É proibido, mas muitos cubanos têm. Tenho internet, o que é rigorosamente vedado aos cubanos. Todo dia me comunico com o mundo pela internet.

- Mas como você têm um provedor?

Abriu mais ainda seu sorriso: - pela esquerda... pela esquerda...

- Ouvi dizer que todo cubano tem bicicleta. Li no Brasil que o cubano se

divide em cabeça, tronco, membros e bicicleta. Você tem?

- Não. Tenho um carro velho, que me dá muito prazer.

Chegamos na beira mar. Um enorme muro o cerca. É o Malecon. Parou o carro perto da Catedral. Descemos para ver a cidade velha. Pensei que estava na Bahia. Quase não tem diferença, mesmo porque o traje típico das baianas é quase idêntico ao das cubanas. A praça repleta de músicos. O som caribenho invadindo nossos ouvidos. Uma negra, vestida de branco, lábios pintados exageradamente de vermelho, pitando um imenso charuto, bailava num verdadeiro show, fazendo coreografia para os músicos. Artistas populares faziam representação. Um casamento, que pensei fazer parte do espetáculo, mas que depois descobri ser real, com os noivos a frente, daminhas de honra, pais, padrinhos e convidados, desfilava frente à igreja. Ficamos deslumbrados. Mas nosso tempo era pequeno. Visitamos as famosas Bodeguita e Floridita, botecos onde Hemingway se refrescava com mojitos e daiquiris.

Explicou-nos que as ruas eram estreitas para que os prédios de um lado dessem sombra aos do outro e discorreu sobre a arquitetura espanhola, com influência árabe, agora sendo restaurada, graças ao empenho da ONESCO.

Fiquei pensando com meus botões. Perguntei para

Sandra: - se a gente fosse montar alguma empresa aqui, o que você teria em mente?

Ela, sem pensar, deu a mesma resposta que estava na minha cabeça: -uma fábrica de tintas.

- Agora vou lhes mostrar a melhor casa de música de Havana.

O bar, no meio de uma quadra, modesto como todos os outros. Entramos. Logo nos apresentou: - é a minha irmã. Formada em música pela Universidade de Havana. A mulata nos beijou, como se fôssemos conhecidos há muito – o que é hábito tipicamente cubano – e nos apresentou as outras três participantes do conjunto. Todas nos beijaram. Estavam sentadas, fumando. Era hora do intervalo. Tomamos uma mesa e fomos atendidos com bastante demora. As moças passaram a tocar e cantar. Ótimas, realmente. Perguntei qual era o ritmo, pois tenho dificuldades em distinguir a rumba do mambo, da salsa, e de tantos outros. César, com uma palavra, resolveu: - Som. Tudo aqui pode ser chamado de “som”. Não se preocupe com o nome.

A irmã do César, após a apresentação, tentou nos vender um CD. Não comprei no momento, deixei para a volta, mas deixei dois dólares no pires das meninas.

Deixamos o bar. Um flanelinha guardava o táxi. Ganhou centavos de dólar. César mostrou-nos Vedado com suas mansões, bairro em que os ricos moravam antes da revolução e os pobres não podiam freqüentar. Depois um local à beira mar, onde somente estrangeiros, donos de barcos, têm acesso e as embaixadas, parando frente à que serviu à antiga União Soviética, uma estrutura enorme de cimento, pesada, onde perguntou com ar de deboche: - já viram construção mais feia do que esta?

Não respondemos, Sandra porque não a achou tão feia e eu porque conheço bem Brasília e, sem querer falar mal do nosso grande arquiteto, acho horrível. Mas uma coisa ficou patente: os cubanos, apesar da ajuda que tiveram, jamais digeriram a soberania soviética.

- Agora quero lhes mostrar um local onde penso que o Fidel fica algumas vezes.

Saímos da cidade e deparamos com um imenso cercado, com muitos militares vigiando. Precisou se identificar, explicando que estava conduzindo turistas em um passeio. Não vimos nada demais, a não ser a vigilância. César disse que ninguém sabe de onde Fidel comanda o país. Que ele é obrigado a estar sempre mudando, pois já sofreu seiscentas tentativas de assassinato.

Fiquei com pena do supremo comandante. Deve ser dura a vida de ditador.

Na volta para o aeroporto fez questão de dizer que não havia crimes em Havana. Que poderíamos passear sem medo pelas ruas, ao contrário do Brasil, que ele conhecia pela violência.

Quis revidar, mas como?

Perguntei: - há gente presa por crimes comuns?

- Sim. Há muita gente presa.

- Homicidas?

- Não. Não há muitos homicídios.

- Que tipo de crime?

- Mais furtos e roubos.

Era a minha oportunidade. Falei: - então é como no Brasil.

- Não. Menos... menos.

No aeroporto senti na pele o furto. Sem ser solicitado, um negro enorme apanha nossas bagagens no porta-malas do táxi e passa para seu carrinho de mão. Perguntei quanto era. Respondeu que era um dólar. Tudo bem. Consultei os bolsos e a menor nota que tinha era de dez. Ele: - eu dou o troco. Pegou a nota e me deixou até hoje esperando. Valeu a experiência, apesar da cara de bobo.

continua......