Uma greve federal!
As greves na Universidade Federal do início dos anos 80 eram fantásticas: no anfiteatro lotado, sentavam-se lado a lado, estudantes, docentes e funcionários, em ação conjunta em prol de interesses no poder de compra dos salários e para refletir politicamente as relações de trabalho da classe dos trabalhadores da educação.
Com organização primorosa, as comissões anunciadas pela mesa, abriam inscrições, e por afinidade, cada participante se inscrevia. Todos os Campi enviavam representantes. Vivi os melhores dias da minha vida cidadã naquelas lutas. Desde a graduação, assídua nas Assembleias ou atividades do movimento estudantil, me formei também na vontade e crença de que lutar é imprescindível.
Uma mulher goiana, de compleição pequena, calma, porém muito ativa e cônscia de sua mega responsabilidade nos dirigia, e naqueles meados dos anos 80, ela que nunca se expressava além das pautas, um dia me contou numa das greves que a família estava ameaçada pelos militares, de forma que passou a restringir sua aparição nas Assembleias, e tinha uma “escolta” solidária dentre os grevistas. Ao lado dela, mas brilhando tanto quanto, um companheiro de grandes olhos azuis, tinha as palavras certas, presidia junto com ela, e também nos representava em Brasília.
Estive na Comissão de Comunicação, mas minha função era pilotar meu Chevette, e já que conhecia nada da cidade, o carro cheio de companheiros, nossa missão era ir aos Correios, gráficas, distribuir correspondências que chegavam lá no local de reunião da Assembleia, tudo sendo disponibilizado no anfiteatro onde às 7h nos reuníamos todos os dias, às vezes por meses. Eu fui a 5ª proprietária do Chevette e o paguei à vista porque em 5 meses de contrato numa Federal naqueles tempos, e com a coesão e força do Sindicato, nossos proventos não se defasavam. A participação era muito boa, acredito que até dos docentes, mas sempre havia os que ficavam em casa, iam passear fora da cidade, e infelizmente nunca iam sequer votar contra a greve, adorando com certeza, o aumento que nós duramente conseguíamos sem seus apoios.
Greve não era festa não.
Ao longo e após uma greve, nos sentíamos exaustas-os, estressadas-os, perdíamos peso, ganhávamos olheiras, e, mesmo assim, lá estávamos nós fechando o movimento, cumprindo todos os acordos de reposição de aulas e atividades, aconselhando alunos sobre oportunidades de estágios, ou seja, a greve não acabava sem avaliar cada coisa, éramos comunidade.
Os alienados pareciam cachorros magros e doentes e mal humorados. Alienação é escolher estar à margem dos seus, é escolher enfraquecer o movimento.
Nunca devem ter ouvido a famosa frase “estudante é como elefante, não sabe a força que tem”, e muito menos, educação para atuar junto aos seus pares. Palco de reflexões, me chamou a atenção o que um professor com doçura certa vez explicou a uma aluna que se tornou agressiva por ter perdido a residência, e por não se achar ganhadora de nada com a greve. Ele disse a ela: “você de fato parece ter perdido muito, mas, no entanto, a cidade se livrou de mais um péssimo político, que nunca mais se elegerá por aqui”. “Esse politico, convidado pelo movimento, aqui esteve e teve péssimo desempenho, sendo que lá fora, a imprensa não fez as perguntas fundamentais e ele se elegeu. Você acha pouco?”. As lições nem sempre comovem todos. Eu achei uma lição e tanto para a jovem!
Assembleias eram também de formação política, e não havia um único dia sem apresentação de mesas de debate com parlamentares da cidade (vereadores, prefeitos), do estado (secretários, governador), representantes sindicais e dos partidos políticos, e um microfone aberto para quem quisesse argui-los. Era muito aprendizado, formação in loco, dia e noite, como num intensivão. Estávamos parados para: “olhar nossa realidade, reavaliar quem éramos, quem estava do nosso lado povo trabalhador, como pensavam nossos políticos, que mensagem nos trouxeram numa situação de gravidade, os que aceitaram vir, o que pensavam de nós e de nossos semelhantes, dos nossos valores.”
Um dia vi um Brasil que eu desconhecia. Aconteceu sem que a mesa avisasse. De repente, campesinos do MST adentraram o anfiteatro, organizados em fileiras perfeitas, com suas enxadas e bandeiras, e palavras de ordem e cantoria. Velhinhos, senhoras, jovens. De arrepiar, todos instintivamente se levantaram e os aplaudimos vigorosamente. Nós que lutávamos por salários ainda melhores, enquanto eles SEM TERRA, e deles o som das palavras mais significativas. Eles são assim! Minha vida ficou marcada e minha assiduidade e emoção de participar dos movimentos muito se inspiraram naqueles trabalhadoras (es).
Eram quase 12 a 15 horas sem sair do Campus, somente parando nos fins de semana, e exaustas-os, nos refazíamos emocionalmente pela competência da Comissão de Cultura que nos mostrava que a luta é também alegria, é estética, inteligente e acalma e motiva para o dia seguinte. Os shows “Prata da Casa” que incluíam os talentos locais eram muito bons. Havia comida para vender feita por pessoas da comunidade, associações de funcionários, de docentes, e isso salvou muita gente quando nos cortavam os salários para tentar refrear a luta. Docentes pouco eram atingidos, mas os funcionários dos escalões mais humildes sentiam e muito, e por esta razão, o sindicato fazia empréstimos, doava alimentos, e fichas para as comidas do dia. Sindicatos!
Greves eram lá oportunidades para a cidadania, a politica, a solidariedade, a amizade, e a apreciação de cultura: Universidade fora dos muros, dentro da comunidade, formando cidadãs(ãos) e não só gentes com x trabalhos publicados! A greve é trabalho, coragem, indignação contra retrocessos, introspecção, inquietação, mas tem que ser também transformação. A maior força dela é jamais aceitar ganhos parciais, isto é, de somente uma parte da comunidade no caso, universitária, porque a luta é conjunta: funcionários, estudantes e professores. A outra é ensinar! Ensinar politica, cidadania, cooperação, solidariedade, cultura, a todas as categorias, com direção firme e entusiasmada, e democrática, dividindo os problemas com todos, e presença o tempo todo no local de trabalho.
É mais que hora de compreendermos que devemos estar unidas(os) nas discussões e busca de conquistas trabalhistas. Que felicidade é não ter mendigos nas ruas, é desejar para qualquer trabalhador uma vida digna, é ajudar a eliminar esse estado miserável para outro de vida justa. Se os trabalhadores não se derem conta de que devem caminhar todos juntos, independentemente do salário que tem, incorrerão em fragilidade da excelência humana. Ao contrario, se os mais beneficiados pelo sistema forem afeitos a integridade de todos em seus espaços de trabalho, haverá respeitabilidade e isso confere progresso humano.