Prisma

Não foi de primeira vista que fizemos amizade ou mesmo contato. A colega vinha do interior, de uma cidade turística, e era no início do 1o semestre, um motivo de admiração de toda a classe, por ter um estilo meio “hippie”. Pela peculiaridade de manter o dedo polegar esquerdo na boca, tinha o apelido de “Dedinho”. Após as primeiras provas do curso, ela me procurou e convidou-me para estudarmos juntas. Aceitei e passamos a discutir em qual república nos reuniríamos e optamos pela dela, que, ao contrário da minha, tinha espaço e silêncio. Nos demos muito bem estudando juntas, nossas médias melhoraram. De fato estudávamos muito.

Uma vez ela contou-me com tristeza que tinha ido à São Paulo, para morar e trabalhar, porém, desistiu quando entrando num ônibus com um maço de flores, foi saudando a todos e desejando bom dia, e distribuindo uma flor para cada pessoa, e ninguém retribuiu sequer os bons dias, ou, aceitou a flor. Repetiu essa operação de acolhimento duas vezes. Voltou para o interior.

A república da minha amiga era mista. Também tinha uma gatinha que subia na cortina e quando chegava ao alto, jogava-se como se num circo atuasse. Uma vez fez três acrobacias seguidas e eu me senti em um mundo muito distinto de tudo o que havia visto. A república era mal vista pela cidade, e mesmo dentro da universidade havia muito julgamento. Nunca me importei de frequentar a casa, porque sempre achei que eu faria apenas o que me conviesse e quisesse. Ao contrário, era grata pelo local e silêncio para estudar.

Compenetrada nos estudos nunca faltava às aulas, até ocorrer um fato singular! Chegou às lojas o LP “The Dark Side of the Moon” da banda inglesa Pink Floyd, ou, como o chamávamos “Prisma”, em vista da capa ter uma imagem do fenômeno, conhecido em Óptica como refração, consistindo na separação da luz em um espectro de cores. O Vinil foi lançado no dia 24 de março de 1973 na Grã-Bretanha, de acesso para nós em 1975. Ela foi a primeira de nós duas a adquiri-lo.

Assim que o conseguiu, levou-o para a faculdade e me mostrou e eu fiquei impaciente para ouvi-lo. Então veio a proposta que aprovei sem mais: matar aula e ouvir o que até hoje é considerado um dos mais importantes discos de todos os tempos. Lá na republica da minha amiga, sentadas no chão da sala de jantar, com uma almofada nas costas e um toca discos pequenino, nos tocamos o vinil parte da manhã, a tarde toda, sem parar para almoçar, sem tomar água, como se tudo o que precisássemos estivesse naquela sonoridade. Já tarde, um gentil rapaz morador da república comentando nosso fervor e jejum, nos convidou para jantar e estava ótimo.

Achei o disco deslumbrante. Mal dormi. Fechava os olhos e buscava as sequências quase decoradas no dia, o sensacional vocal de Clare Torry em "The Great Gig in the Sky". Um presente mesmo. Chegando em casa no final de semana, implorei para compra-lo e o fiz. Os músicos de Pink Floyd: Roger Waters, David Gilmour, Rick Wright e Nick Mason. Várias tentativas surgiram para definir o disco: “ Intuitivo e racional, misterioso, original, lírico, pretensioso, orgânico e místico”. No disco, o “lado escuro da lua" pode representar aquilo que não está à vista e que, por isso mesmo, é um mistério para nós.

Quando olho para meu passado, e me lembro desse fato há 50 anos, e quando olho o sol forte, fecho os olhos e vejo ao longe em campo aberto, a minha amiga, de vestido de chita e um girassol enorme nas mãos caminhando em direção ao mundo de acolhimento e bondade que ela imaginou poder construir.

Aprendi com ela sobre a pureza de sentimentos que não se moldam por dogmas, convenções sociais e artefatos. Estes comportamentos forjados em nome de “conviver em sociedade”, “ser normal”, e enfim estes objetivos tão alquebrados nas sociedades capitalistas clássicas, pouco ou nada servem ao bem pessoal e principalmente coletivo. Admirei dessa pessoa já na década de 70, o desprendimento, a coragem de viver sob seus próprios valores ainda que incomodada e perseguida por isso, e por fim, a descontaminação desse mundo cheio de certezas que abalam a todos frequentemente.

https://www.correiodopovo.com.br/arteagenda/the-dark-side-of-the-moon-do-pink-floyd-completa-42-anos-1.168674

https://www.uai.com.br/app/noticia/musica/2013/03/01/noticias-musica,140747/com-40-anos-de-historia-oitavo-album-de-pink-floyd-ainda-desperta-int.shtml

https://pt.wikipedia.org/wiki/The_Dark_Side_of_the_Moon#Rela%C3%A7%C3%A3o_com_o_filme_%22O_m%C3%A1gico_de_Oz%22. Relação com o filme “O Mágico de Oz”.