O vírus da indiferença

Meu exílio já dura 54 anos, desde que nasci num casebre de taipa, nessas ruas sem nome da periferia de Jequié, onde até hoje o saneamento básico ainda não chegou. Primeiro de oito filhos famintos, descendente de mãe paralítica e pai trabalhador braçal. Mestiço, não tenho antepassados, sempre vivi à revelia do discurso dominante, escorraçado e persona non grata em qualquer grupo social. Ermitão por natureza e por necessidade de sobreviver, estrangeiro em ambos os lados da fronteira.

 

A quarentena em 2020 só seguiu seu curso, com mais força, vigilância, ansiedade e pavor. E foi logo no carnaval, em fevereiro, pois sempre viajo pra fora de Salvador em tempo de festa momesca. Tinha bônus no cartão e troquei por passagem aérea ida e volta para Vitória da Conquista-BA. Arrumei a mochila e parti. Partida tranquila, quase ninguém saindo da capital nesse período. Em meia hora percorri do Centro ao Aeroporto, via metrô, pagando apenas R$ 3,70 (três reais e setenta centavos). No interior, depois de um a dois dias navegando na internet, lendo livros e vendo televisão, já estava entrando em pânico com tanta notícia de vírus, quarentena, mortes, fechamento de estradas, proibição de acesso a cidades, e todo o tumulto ligado à pandemia.

 

Para aliviar a tensão e tirar o foco dessa atribulação midiática, que chegava também pelo rádio e redes sociais, além dos comentários de familiares, fomos todos passar um dia numa espécie de resorte, com piscina, churrascaria, equitação, comer jamelão maduro, ver o povo pescando no “pesque e pague”. Em casa, o massacre continuou. Meu voo de volta não seria direto, primeiro iria a Guarulhos, São Paulo. Já no aeroporto de Conquista, na fila de embarque, até a fisionomia diferente de algum passageiro já ligava o alerta, me perturbando a razão e a lógica. A guerra de informações nos tira do eixo, passamos a não raciocinar e tudo vira perigo ao redor. No avião, marquei bem minha poltrona, para o caso de ter que relatar algo às autoridades: atrás de mim alguém tossia o tempo todo. E a cada som daquele desconforto respiratório, a luz do pavor piscava em minha cabeça. Rezei para chegar logo em casa e me isolar mais ainda do que já tenho feito nesses longos anos de vida. Em São Paulo, alguns passageiros e funcionários das companhias aéreas já estavam desfilando de máscaras. Eu, ainda sem, como até agora, tentando achar que os loucos são os outros. E buscando espairecer, pensar em assuntos diferentes, evitar entrar na paranoia que já estava instalada em mim e eu não fazia ideia.

 

Pouso em Salvador e o retorno pra casa, tranquilo, devido ao horário tarde da noite, em que quase ninguém circulava. O metrô vazio, desembarquei na estação Brotas e desci a Ladeira dos Galés, morrendo de medo de ser assaltado, apesar de não ter nada de valor na bagagem. Em casa, finalmente, livre dos perigos da rua, mas de volta ao confinamento e ao pânico das redes sociais. Não há isolamento social com internet. Nem com vizinhos futriqueiros. Nem com amigos curiosos que fuçam suas postagens todos os dias, curtem e compartilham, comentam e complementam.

 

Dormi o sono dos justos, de quem tinha passado a tarde quase toda e metade da noite no meio de uma multidão que podia estar contaminada com centenas de doenças, inclusive o Corona Vírus 2019. Podia ser catapora, sarampo, tuberculose, herpes, as várias hepatites, gripes comuns, mas nenhuma dessas está no radar dos fiscais do governo e dos meus vizinhos. E qualquer uma dessas poderia me contaminar, pelo contato físico direto; umas outras, por bacilos voadores liberados na respiração, tosse, espirro. Enfim, fui dormir. E acordei no dia seguinte para trabalhar. Dois dias presencialmente. E o fim de semana chega, para pedalar, ir a dois eventos literários, fazer feira. A semana reinicia e, dois dias depois, confinamento: começo a trabalhar em casa, via internet. Experiência nova, estranha, incômoda. Por outro lado, fica a meu critério planejar o horário de expediente, o ritmo das atividades, a hora de encerrar, com meta a cumprir, para não deixar nada embolar.

 

Em casa o bombardeio de notícias recomeça. A cada cinco minutos, como uma sirene de quartel, a TV tocava uma música enervante e começava a desfilar detalhes de mortes, cortejos fúnebres, relatórios de progressão de espalhamento da doença, depoimentos de parentes de vítimas, aeroportos atulhados de passageiros reclamando a falta de voos de retorno, bolsa subindo, bolsa descendo, preços disparando, desmentidos, notícias que não batiam, ministros, secretários, autoridades da saúde e afins pregando o futuro catastrófico, fronteiras sendo fechadas... A pandemia de notícias chega mais veloz que o próprio Corona. E a mente entrando em colapso para processar tudo, e o pânico se instalando em mim, e a ansiedade, e dor no peito, e começando a perceber sintomas estranhos. Será que estou contaminado? Já era tarde.

 

No final de semana havia visitado um amigo que tossia o tempo todo, fomos pedalar por quinze quilômetros no Parque Metropolitano de Pituaçu, voltei à sua casa, no bairro Castelo Branco, e dormi a tarde inteira. Antes de visitá-lo já estava gripado, cheguei em casa febril, tossindo, achando que tinha pego sua ‘gripe’, lhe recomendei ir ao posto médico. Ele foi. Eu não. Ele foi diagnosticado com tuberculose, devido aos maus lençóis que enfrentou no Rio Grande do Sul em recente viagem para trabalhar. Eu não tive mais tosse, comecei a achar que estava com tuberculose também, e pesquisei daqui e dali, na tentativa de confirmar meu auto diagnóstico.

 

E a piração continua, agora com notícias econômicas. É dólar subindo, é bolsa despencando, e eu sem dinheiro americano no bolso nem investimento em ações, mas a TV me convence de que devo me preocupar e não dormir e suar e endoidar. E repete que a Rússia está brigando com os Países Árabes, e que Trump está planejando boicotar o presidente brasileiro, que vai ter passeata para apoiar o fim do confinamento, e a Rede Globo cancela os programas de auditório e para as filmagens de novelas; programas de futebol são cancelados e jogos esportivos são realizados sem público, e isso, e aquilo e eu endoidando ainda mais.

 

Nem escrever poesia me salvou. Nem ler poesia me salvou. Nem tentar fazer crônicas da quarentena me salvou. A piração atinge os dedos no teclado do notebook. As críticas infundadas chegam, a criatividade embota, o texto não flui. Tudo dispara o medo: a chamada telefônica, o interfone que chama... Evito ir ao mercado para não pegar na maçaneta do portão do prédio onde moro, me apavoro só de pensar em parar no semáforo e o vírus me invadir por todos os lados.

 

Saio olhando para todos os lados, faço as compras, volto pra casa, me interno, estoco comida e bebida, pago os boletos dos serviços estritamente necessários, mergulho no trabalho via internet e tento me acalmar, esquecer o mundo ao redor e toda a guerra de informações que me ataca sem piedade. O refúgio é doentio. Pela internet o isolamento social não existe, como disse. Simulando falsa interação, todos os meus contatos resolvem, de uma vez só, me enviar links, memes, filmes, textos, poemas, comentários, banners, tudo ligado ao Covid-19. Ligo a TV para me distrair, com o controle remoto na mão, para escapar das notícias e não saber do outro confinamento: BBB. A programação da televisão é recheada de programas e novelas reprisados, nenhuma novidade.

 

Começo a fazer piada, a sorrir do perigo feito um louco, a fazer ironias, posto bobagens e tento desinfetar a mente. Aí vem o presidente do país e faz um monte de coisas contra as recomendações médicas, e vem sua equipe e diz que vai cortar salários, e vejo tudo recomeçar em minha cabeça, não me alimento direito, não durmo direito. Não quero entrar na onda dos remédios controlados, e tento resistir, tento, tento... Espero que esta noite de pesadelo passe logo, e sonho com um novo dia em que voltaremos todos a nos falar nas ruas, nos abraçar.

 

Mas este sonho é outra utopia. Atualmente somente falamos pela internet e os abraços e apertos de mão são todos virtuais. A loucura de hoje é fofocar pelas redes, comentar textos sem ter lido, espalhar fake news, numa onda louca e insana, diuturnamente, sem descanso, pois o vício alimenta o vício e nos mantém ativos e operantes.

 

Nada será diferente. Para quem mora em prédios e condomínios, serão de novo meros desconhecidos passando uns pelos outros nas áreas comuns. Assistiremos sem reagir a massacre de indígenas, devastação do meio ambiente, exclusão social, assassinatos de LGBTQI+, morte de lideranças sociais, fome, desemprego, trabalhadores ambulantes e artistas de rua jogados à própria sorte, intolerância religiosa, feminicídios... Voltaremos a repetir o mantra de que somos uma espécie ‘sociável’, mesmo quando vivemos nos apartando e nos dividindo por classe social, cor de pele, time de futebol.

 

Desejo voltar aos ditos dias normais, em que fingimos não ver o gari, o porteiro, o auxiliar de limpeza, o pedinte, o morador de rua. Desejo voltar ao convívio “social” em que fechamos os vidros dos carros quando paramos no semáforo, a fingir que não enxergamos a mão estendida de uma criança.

 

Socorro, quero voltar para outra pandemia. Somos todos loucos, fingimos que não sabemos dos sessenta mil jovens negros assassinados todos os anos; fechamos os olhos para as mortes nas filas de hospitais ou depois de serem mal atendidos; calamos para a fome que dizima gente a rodo; não nos incomodamos com as mortes na Síria, na Palestina, na Faixa de Gaza, na Vila Moisés (Cabula, Salvador-BA).

 

Quero voltar ao normal, ao tempo em que a gente jogava comida no lixo e ainda reclamava se alguém faminto fosse revirar as latas em busca de alimento. Quero voltar ao tempo dos mercados desperdiçando frutas, quero voltar a ver morros desmoronando e soterrando gente, quero voltar a ver notícias de assaltos, assassinatos oficializados, sem que ninguém fique indignado...

 

Essa pandemia do Corona Vírus está me deixando cego, surdo e mudo, exatamente como eu era antes. Quero voltar para a minha outra loucura da indignação seletiva, do "Je Sui Charlie Hebdo". Nunca mais isolamento; quero de volta nossa hipocrisia coletiva.

 

Publicado na antologia "Sobrevivendo à Pandemia de Covid19" - Editora Cultive, Suíça.

Valdeck Almeida de Jesus
Enviado por Valdeck Almeida de Jesus em 10/07/2022
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