"Rainbow face" e o problema intrínseco do humor
Existe piada de hétero??
Uns 10 anos atrás até essa data, eu era fã do Comédia MTV, um programa de humor da falecida MTV Brasil. Porque o meu pensamento crítico não era tão ativo como hoje em dia, eu assistia as esquetes achando graça em quase tudo, especialmente por causa de seu tom "politicamente incorreto". Atores héteros interpretando personagens implícita ou explicitamente Lgbt's, abundavam.. Já, comediantes Lgbt's interpretando a si mesmos parece que não existia em território nacional. Preocupação se não estavam ofendendo ou saindo do limite também não. Foi necessário um quadro de muito mal gosto "sobre" autistas ir pro ar e gerar reações de indignação para que pessoas de fora interviessem tentando colocar um pouco de ordem ali. Pois, naquela época, o politicamente incorreto "aceitável" era desse jeito mesmo, em que algumas "vacas sagradas" do altar progressista deveriam ser sacrificadas para que o "rir do outro" e não "com o outro" continuasse a ser o padrão do humor. Piadas racistas e misóginas já não eram mais permitidas. No entanto, "sobravam" as homofóbicas e as capacitistas. O tempo passou e estou eu aqui para vos apresentar um novo conceito, baseado no conhecido "black face", que se consistia na prática teatral em que atores brancos escureciam a pele e carregavam no estereótipo para interpretar personagens negros, isto é, pejorativamente. Bem, eu chamo este novo conceito que estou propondo de "rainbow face", em que atores héteros (ainda) fazem algo parecido, de carregar ou estereotipar na interpretação e na caracterização, transformando a identidade e/ou a preferência sexual atípica na própria piada. Afinal, qual seria a graça no "legendário" "Seu Peru", personagem (rainbow face) da datada "Escolinha do professor Raimundo", se não o simples fato de "ser" gay??
Rir "do outro" e não "com o outro", especialmente se for lgbt ou com deficiência//desordem, tem sido uma prática muito comum na comédia ocidental. Não bastasse a carga pesada de ódio gratuito, escárnio e/ou preconceito predatório que sempre sofremos, nos idos de 2010, estávamos sendo convencidos de que o nosso papel no "admirável mundo novo" seria o de bobos da corte. De que o mais importante é o aumento de nossa "representatividade" na mídia, independente se somos apresentados como "freaks" dignos de pena e/ou de observações gratuitamente maldosas camufladas como piadas inocentes. Acredito até que existia uma política de tolerância dentro do ativismo Lgbt com piadas homofóbicas mas, supostamente suaves, porque entendiam que seria uma maneira do grande público simpatizar com a causa. Claro, ingenuamente, se permitir que héteros continuem a nos usar como piada "fácil" não deveria ser sequer considerado,nem ''estrategicamente''.
A hipocrisia do "rir de si mesmo" por aqueles que ganham a vida rindo, especialmente dos outros
Um argumento muito usado por comediantes para justificar o humor ofensivo é de que devemos aprender a rir dos nossos defeitos, de nós mesmos (sic!). No entanto, parece que a maioria deles não gosta nem um pouco quando são alvos de piadas ofensivas, não é??
Outro problema intrínseco do humor é que, historicamente, sempre teve preferências pautadas de acordo ou alinhadas com a hegemonia de poder político e/ou cultural. Não é à toa que piadas de hétero são praticamente inexistentes, em absoluto contraste ao legado de obras humorísticas que ridicularizam Lgbt's apenas por serem o que são.
O humor ofensivo está cada vez mais ultrapassado por estar mais evidente que não se trata apenas de uma piada...
Duas pessoas do mesmo sexo demonstrando afeto não é intrinsecamente feio ou engraçado
Em algumas culturas, a nudez é vista como parte da normalidade, por exemplo, em certas comunidades indígenas remanescentes. Estar nu, pra eles, não é intrinsecamente vergonhoso, condenável ou mesmo excitável, mas, temos sido culturalmente inculcados a pensar que sim, pois temos sofrido uma espécie de lavagem cerebral na linguagem e nos costumes que resulta em uma associação enraizada de que certos comportamentos são ou estão errados, por si mesmos. Vos digo que o mesmo acontece em relação à trocas ou demonstrações de homoafetividade em público ou acontecendo de maneira espontânea perto de outras pessoas. Como resultado, a associação "pavloviana" de que "ser gay" é digno de ridicularização ou demonização automática, transforma o que era pra ser trivialmente percebido em uma atração circense, isso quando não descamba para o ódio aberto.
Redenção e o único caminho viável de decência para o humor: a autodepreciação
De vez em quando eu visito o Instagram da Tatá Werneck que foi uma das estrelas do Comédia MTV, e caio na gargalhada por sua espontânea e constante espirituosidade autodepreciativa. Taí. Ela não precisa rir do outro, especialmente de um outro que tem sido humilhado e oprimido por tanto tempo, para ser engraçada.
E, por acaso, alguém realmente precisa??
Este é o único caminho que o humor deve seguir se os comediantes desejam ser mais respeitáveis e decentes, de terem a si mesmos como fonte principal para as suas piadas sem mais explorarem mazelas e idiossincrasias alheias visando arrancar risos mas, também, reforçando preconceitos.
Em relação à duvidosa tradição de atores héteros interpretando personagens Lgbt's e carregando no estereótipo, já passou da hora de isso acabar, que também vale para o caso de "personagens" portadores de deficiência, síndromes ou transtornos, sendo interpretados por atores sem essas condições, quer seja para fazer comédia ou outro gênero. Se querem ser engraçados, que procurem outro, de preferência, a si mesmos para tal.