Prova de Antropologia
Achei a prova de antropologia que fiz no ano passado (2019), no curso de Geografia. Eu tinha que escrever uma reflexão sobre um texto antropológico, escolhido a dedo pelo professor. Eis o resultado:
Comentário do texto Os rituais do corpo entre os Nacirema”, de Horace Miner.
Os limites da antropologia.
O texto “Os rituais do corpo entre os Nacirema”, de Horace Miner é perturbador, pois ele descreve a própria civilização ocidental nos termos da linguagem técnica antropológica. É justamente essa descrição técnica, utilizada pela antropologia para retratar as sociedades ditas primitivas, que causa o efeito de estranhamento e comicidade quando aplicada as sociedades modernas. O efeito de estranhamento é tão profundo que, se não fosse por certas dicas propositalmente inseridas no texto, seria muito difícil de reconhecer as práticas tão familiares ali descritas, como escovar os dentes. O vocabulário antropológico tornou estranho o que era familiar e trivial.
Mas, é correto descrever acontecimentos corriqueiros do cotidiano utilizando a linguagem antropológica? Apesar de soar estranho descrever banheiros como santuários, lavabos como fontes, remédios como poções mágicas poderosas, pagamento em dinheiro como presentes, hospitais como templos, médicos como curandeiros e práticas cotidianas como rituais, tais termos não estão exatamente errados e nem certos. Eles dizem mais sobre as escolhas estilísticas do autor do texto do que sobre os eventos em si. E apesar da Ciência não ser exatamente magia (pois magia é a inversão da relação de causa e efeito. Magia é quando o efeito é maior que a causa), a relação da maior parte das pessoas com a Ciência (e isso vale também para os cientistas) é uma relação irracional, baseada em crenças e fé cega. Afinal, é humanamente impossível que exista alguém que conheça todas as provas e demonstrações de todos os postulados científicos, fora de sua pequena área da qual é especialista. Acreditar num conhecimento não demonstrado é ter fé.
Um dos grandes entraves, talvez o maior deles, para a compreensão da alteridade está nas limitações intrínsecas da linguagem humana. A linguagem é a matéria da comunicação e do pensamento, no entanto, ela possui limitações. A linguagem humana é carregada de ambivalências. Ambivalência é a possibilidade de classificar numa mesma categoria objetos e eventos distintos. Trata-se de uma falha da função nomeadora da linguagem. Quanto mais a linguagem se esforça para classificar e ordenar o mundo, mais a realidade se torna caótica. A ambivalência é, portanto, um subproduto natural do trabalho de classificação. Ao classificar e tentar compreender o outro e as coisas por meio da linguagem, se produz indefinições. O que se pode concluir a partir do que foi exposto é que nem mesmo a descrição técnica é neutra.
Produz-se sentidos e significados ao selecionar elementos isolados da realidade e descreve-los por meio da linguagem. Entretanto, o pensamento é feito de linguagem. Mais estritamente falando, o pensamento científico é classificatório e conceitual. Então, se durante o processo de compreensão da alteridade, o ato de selecionar, descrever, classificar e conceituar (etapas necessárias da produção científica) se produz indefinições, ambiguidades e, no limite, a incompreensão do outro, a conclusão bastante óbvia é: a compreensão da alteridade, pelo menos em termos científicos, é impossível. E isso coloca em cheque a própria existência da antropologia enquanto disciplina. Se ao descrever o que é conhecido, por meio de um vocabulário peculiar, o resultado é o estranhamento, que dirá o desconhecido, o outro, o diferente?