A justiça social é muito maior que o marxismo

O clamor pela justiça social é tão ou mais antigo que os irmãos Graco, da Roma antiga. Por isso que, reduzi-la à ideologia marxista, faz com que percamos sua real dimensão histórica e filosófica, bem como o seu potencial de alcance político e social.

Se é o marxismo que deriva do ideal de justiça social.

No entanto, amplos setores das esquerdas acreditam e praticam o oposto, o que tem tido consequências negativas sobre a eficácia das suas estratégias políticas.

Vejamos como isso nos tem impactado.

Narrativa orgânica versus narrativa artificial

É de praxe que partidos progressistas, especialmente os da extrema esquerda, empreguem uma narrativa marxista para a compreensão das sociedades humanas, usando termos como "camaradas", "classe trabalhadora", "donos dos meios de produção" e até o de "operários", classe em franca extinção por causa da automatização progressiva e, também, da expansão do setor terciário, de serviços.

Então, passam a tratar Karl Marx (Friedrich Engels raramente é lembrado) como um profeta que (supostamente) descobriu a justiça social, e que todos devem ser catequizados em sua obra. Outro grande problema da narrativa marxista é o seu nível de organicidade, porque não é natural ou fácil de ser percebida e internalizada; como se estivesse vindo de fora, e não extraída da essência de dentro, da realidade do cotidiano. Enquanto a justiça social, por si mesma, apresenta uma linguagem mais orgânica, por exemplo, quando "populares", de maneira espontânea, expressam revolta ou insatisfação com as desigualdades entre as classes, a linguagem marxista se expressa de maneira artificial, no sentido oposto de conseguir estabelecer uma rede de comunicação natural, fácil, auto-entendível, sem a necessidade de um linguajar rebuscado, típico de academicismo. Isso nos afasta do grande público, reduzindo os progressistas a um grupo de seguidores de uma quase-seita, que tem a imposição da ideologia marxista como o seu principal objetivo e não a própria justiça social.

É evidente que o marxismo parte do pressuposto lógico de se pensar em respostas específicas ou pré-estruturadas  para o combate ao profundo legado de injustiças históricas, por exemplo, visando à eliminação da propriedade privada, especialmente das maiores. Este texto não tem como intenção diminuir a obra monumental de Karl Marx/Friedrich Engels, mas de criticar seu contínuo uso, muito artificial, acadêmico e/ou não-flexível, dentro das múltiplas esferas sociais, resultando em um constante desencontro entre os defensores da justiça social e, especialmente, as pessoas comuns. Se o que temos é uma ideologia usurpando a percepção integral da realidade, filtrando e eliminando fatos que, a priori, aparentam ser inconvenientes aos seus ideais, enfim, escondendo essas verdades, e não há nada mais equivocado do que fazê-lo. Se queremos um mundo mais igual e encontramos uma humanidade diversa e/ou desigual, por exemplo, devemos analisa-la por todas as perspectivas possíveis: histórica, evolutiva, psico-cognitiva e, então,  buscarmos pelos melhores meios para a implementação da justiça e da harmonia social, a partir desta ou de sua realidade e não por uma idealização distorcida dela. Um problema comum aos idealistas é o ato de transformar/confundir seus ideais ou objetivos com a realidade corrente dos fatos. Por isso que os idealistas igualitaristas estão quase sempre desnaturalizando a verdade das desigualdades intrínsecas entre os seres humanos (e alguns até chegam a expandir essa distorção para seres vivos não-humanos) para, então, "sonhar" além do bom senso e suas ações se transformem em pesadelo, a médio e longo prazo. E, também, tem aqueles que desnaturalizam a realidade de nossa igualdade essencial, em sua grande maioria de conservadores...

A linguagem orgânica adotada pela direita conservadora como parte do seu sucesso

Políticos e ativistas conservadores são os que melhor usam narrativas orgânicas, partindo de uma estratégia em que enfatizam pela agenda cultural, com a qual denotam maior proximidade com a maioria da população, especialmente em um país como o Brasil, enquanto buscam desviar o foco de setores em que mais se distanciam dos reais interesses do povo, nomeadamente o sócio-econômico. Tal como em um truque de mágico, o ativista e/ou político conservador, hipnotiza sua plateia-alvo, fazendo com que preste atenção àquilo que ele quer, exacerbando desavenças quanto às diferenças nos costumes, enquanto que, com a outra mão, maquina outras de suas perversidades, por exemplo, a inculcação da perda de direitos. É elementar, já que no aspecto socioeconômico, o conservadorismo é ainda mais explícito quanto às suas reais intenções, tendo como  principal objetivo, inculcar na mente do homem comum submissão ou obediência acrítica à sua "autoridade", por ser um conjunto de ideologias desenhadas pelas e/ou para as "elites" parasitárias, se monárquicas, teocráticas ou burguesas, que se preocupam principalmente em (como) obter (e manter) vantagens e privilégios injustos para si mesmas, a partir da exploração e da domesticação cultural dos "seus'' subalternizados.

Linguagem orgânica = linguagem "do povo"

Em contraste ao típico ativista/político"conservador", o ativista ou político de esquerda tende a estar acima na hierarquia acadêmica e isso poderia ser considerado vantajoso por, a priori, indicar uma maior inteligência. Mas, a experiência e a lógica que permeiam as relações humanas nos mostram que o oposto é o mais provável, porque, quanto mais aparentemente inteligente é a narrativa, em sua estética, mais inacessível à maioria ela se torna. Este tem sido o modo de se comunicar dos marxistas e,de maneira geral, dos  "justiceiros sociais", em que tentam naturalizar o que não é orgânico e não me refiro à justiça social, mas ao academicismo rígido e sofisticado, adotado a partir dos trabalhos dos seus principais pensadores, bem como por outras referências, diga-se, tendenciosamente verborrágicas; algumas até bem alienadas do cotidiano das pessoas fora dos ciclos universitários ou intelectuais. O potencial de narrativa orgânica da justiça social, portanto, tem andado solto por aí, sem que seja compreendida, estruturada, demarcada e tomada por agentes políticos e culturais das esquerdas como a sua principal ferramenta, se precisam pagar tributo constante ao marxismo. Conservadores usam a linguagem do povo, se confundindo com ele, mesmo que não cheguem a conquistar a todos e que, por trás dessa simpatia, existam motivações escusas. Progressistas usam uma linguagem de professor que busca ensinar as pessoas comuns, tratando-as como intelectualmente inferiores, ao invés de, primeiro, estabelecer laços de identificação natural delas para com eles e que significa concordar mais do que discordar, sempre buscando conciliar divergências e ressaltando pontos em comum, o que o ativismo conservador faz, mas, mais sobre ressaltar o que têm de parecido. Além de uma linguagem inorgânica, acadêmica, os defensores da justiça social, em sua maioria e, especialmente a partir das políticas identitárias de minorias, também passaram a fazer questão de se destacar da multidão, sempre se posicionando como excêntricos às convenções tradicionais do homem comum, incluindo boa parte do que ou como pensa. Aqui, nem é em relação, por exemplo, a publicitar preferências de intimidade mas de querer impô-las a um público alheio, sem qualquer tentativa de diálogo, concessão e/ou conciliação.  A mentalidade-padrão adotada pelo ativismo progressista tem sido a de nunca recuar, de sempre avançar. Mas, se podemos compreender a guerra cultural em que estamos como um jogo de xadrez, então, não é todo avanço que será uma vitória e nem todo recuo que será uma derrota. Falta tato estratégico básico por parte das esquerdas. Deste modo, o xadrezista de esquerda está indo rápido demais em direção à rainha e será ele quem perderá a cabeça, se o xadrezista de direita for hábil.. Se a política se faz e se ganha pela identificação com o público e pelo estabelecimento de uma linguagem natural, fluida, acessível e que também concorde e/ou concilie com uma importante parcela de seus valores, isto é, sem ter que se desfazer dos próprios valores, então, sinto-lhes informar mas as esquerdas estão fazendo tudo errado e só não foram totalmente massacradas pelas direitas ainda deve ser por causa da força intrínseca do próprio conceito de justiça social. Isto é, mesmo com péssimas estratégias de marketing político, baseadas em ingenuidade, pedantismo/arrogância e rigidez ideológica, as frentes progressistas continuam a existir porque é do instinto humano o ideal de justiça.

Auto sabotagem

Além do uso viciado de uma linguagem marcada por citações bibliográficas, tal como se todo discurso marxista fosse um artigo acadêmico e, ainda por cima, dirigido para o grande público, frações nada pequenas de esquerdistas, em redes sociais, continuam defendendo e, sem pensamento crítico, países e figuras históricas que, aparentemente, adotaram os ideais marxistas, pois parece que sentem uma necessidade de terem referências reais para a defesa da justiça social, mesmo que estejam longe de serem as melhores, no que condiz ao nível de sabedoria de suas ideias e ações. O grande problema é que praticamente todas as tentativas bem sucedidas de revoluções populares contra a tirania de elites conservadoras têm sido sangrentas, ao invés de estrategicamente inteligentes e, resultando na substituição por outras tiranias, aquilo que George Orwell, magistralmente, escreveu sob forma de fábula infantil, em seu simples e preciso livro "A revolução dos bichos". Além de usarem obras de Marx/Engels e outros como livros sagrados, supostamente dotados apenas de verdades absolutas e irrefutáveis, muitos esquerdistas ainda menosprezam as duras e legítimas verdades históricas dessas revoluções proletárias, com destaque à russa, muito bem sintetizadas por essa obra específica. Quando se é criado dentro de uma bolha ideológica, não tem como perceber o que de errado está fazendo, porque são bolhas de profunda conformidade em que reflexões e diálogos verdadeiros são combatidos há todo momento, por mais que sejam palavras comuns no vocabulário de muitos que dizem defender a justiça social e que se sintam confortáveis dentro delas. Também é comum a desumanização em relação àqueles que estão fora da bolha, como se tudo o que pensassem estivesse totalmente errado, não apenas em relação às bolhas das esquerdas, pois é uma regra para qualquer ideologia. Vender ao grande público que Venezuela, Cuba, China e até Coreia do Norte são países maravilhosos e que só apresentam problemas por causa das potências capitalistas, especialmente os EUA, ou, que são retratadas de maneira mentirosa pela mídia "ocidental', é como dar um tiro no próprio pé, pela simples razão de não ser plenamente verdadeiro. Demonstram ter altos níveis de doutrinação ideológica, pedantismo e alienação ao mundo fora da bolha. E, novamente, falamos de muita gente que se diz progressista propagando esse catatau de estupidez pelas redes sociais e, ingenuamente, acreditando que as outras pessoas se convencerão por si mesmas ou que seus posicionamentos estão totalmente certos. Estamos falando do mais básico no jogo democrático, de identificação do público com uma ideologia e, consequentemente, com os partidos que a defendem. E, melhor ainda se, ao invés de uma ideologia tendenciosamente incompleta em sua compreensão da realidade alcançável, fosse apenas a sabedoria. Mesmo se as esquerdas estivessem 300% certas sobre tudo o que pensam, tal como pensam sobre si mesmas, ainda assim, haveriam de buscar simplificar sua linguagem, de torná-la mais orgânica, acessível, atraente e mais, de praticá-la. Muitos progressistas endossam a teoria, mas não a prática. Dizem que precisamos ser mais solidários e lutar pela igualdade social, mas o estereótipo do esquerdista caviar já está consolidado. Muitos destes pensam que basta defender partidos ditos de esquerda que, pessoalmente, não precisam traduzir o que dizem defender em sua prática. Não estou sugerindo que nos tornemos monges franciscanos, mas que, atitudes solidárias, para começo de conversa, sejam ou se tornem constantes durante as nossas existências. Praticá-las, sem esperar por revoluções ou vitórias eleitorais importantes, é um ato, mesmo que limitado, de justiça social. Ainda mais impressionante e necessário se forem praticadas em situações adversas tal como a heroica defesa de judeus por parte de vários cidadãos poloneses durante a invasão nazista do seu país, na segunda guerra mundial.  Sua frequência e qualidade mostra o quão comprometido está o indivíduo para com ela. Lembrando que o conhecimento é fundamental para uma prática solidária: característica, eficiente e segura. Do contrário, o risco do fazer o bem ter efeitos colaterais terríveis a médio e longo prazo, será muito alto.

Pela defesa apenas da justiça social, sem marxismo, não precisamos nos comprometer integralmente com países autodeclarados comunistas e que, na verdade, adotaram os passos equivocados da primeira revolução proletária, na Rússia, resultando lá no estalinismo (traição dos ideais da revolução) e nestes em versões tirânica ou autoritariamente idênticas. Do contrário, estaremos basicamente dando maior importância à ideologia marxista (um meio) do que naquilo em que se baseia ou prega, a justiça social (seu objetivo). Isso a fragiliza perante o público. Não é à toa que os "conservadores" adoram essa teimosia progressista com posicionamentos equivocados, pois assim podem nos apontar, generalizadamente, como os maiores e/ou únicos hipócritas. Percebo que é comum esquerdistas adotarem e replicarem de maneira acrítica esses discursos contraditórios, diretamente transmitidos pelo ativismo marxista, sem se darem conta do que estão realmente fazendo. A ingenuidade retórica  desconcertante de muitos progressistas também têm trabalhado contra o nosso sucesso político. É fato que o marxismo e o progressismo, de maneira geral, são as ideologias que mais pregam pela justiça social e que, portanto, exista uma demarcação ideológica ou tendência de adoção dela por esse "lado" do espectro. Mas, ao submetermos este ideal máximo às soluções predeterminadas do marxismo, estaremos perdendo o seu poder de, tal como água, se expressar em vários estados, mas, mantendo-se água, de flexibilidade para ser aplicado em uma pluralidade de contextos. O principal problema da justiça social ainda não é se um país é capitalista ou não, mas o nível de caráter de suas "elites'', especialmente as sócio-econômicas. É lógico pensar que o capitalismo atraia oportunistas egoístas ao topo de uma sociedade já verticalizada. Até à atualidade, pensadores de esquerda ou, em um sentido mais amplo, progressistas, não chegaram a produzir uma estruturação sistematicamente coerente de conhecimentos ou fatos relacionados à essa área da política ou das ciências humanas, se estão demasiadamente comprometidos em replicar diretrizes rígidas do marxismo e de ideologias derivadas, tal como o igualitarismo, em que acredita-se que os seres humanos são todos iguais (não "apenas" em suas essências existenciais) e que apenas as diferenças em seus ambientes que explicam essa diversidade de resultados, por exemplo quanto à variação de capacidades cognitivas. Por essas ideologias, eles culpam a pobreza como única responsável pela média mais baixa de inteligência de grupo de crianças e adolescentes das classes basais, desprezando o valor correlativo dessa relação e predominantemente intrínseco das capacidades cognitivas, que, claro, precisam de estímulos mas são auto-limitadas, de acordo com o potencial de cada um. Muitos acreditam, ingênua e passionalmente, que esses fatos são, na verdade, malabarismos retóricos da direita conservadora para justificar a desigualdade social, seus privilégios (especialmente para os mais abonados) ou condenar a igualdade como um ideal inalcançável. Mesmo que muitos conservadores assim o façam, isso não elimina o teor factual deste exemplo de contextualização da ideologia igualitarista. Parece que muitos progressistas, herdeiros diretos do iluminismo, sentem uma necessidade impulsiva de elaborar "mentiras brancas" ou meias verdades, geralmente inconscientes do que são, para desnaturalizar (quase) todos os posicionamentos dos seus oponentes. Em outras palavras, ao invés de buscarem se colocar em um nível superior ao conservadorismo, aceitam de bom grado atuarem no mesmo nível, em que se nega a integridade da sabedoria pelo filtro de fatos, separando os que lhes são mais convenientes dos que não são. A priori, a justiça social não precisa de uma estrutura ideológica rígida, tal como está constituído o marxismo, bem como qualquer outra ideologia. Basta a análise dos fatos, sem negar nenhum deles, ponderar/ser racional, ter como preferência a harmonia, a justiça e o conhecimento, principiando pelos mais importantes, que são os existenciais, o nível máximo de moralidade que podemos alcançar. Modéstia à parte, seguir o ideal máximo da justiça social ao invés de me sujeitar à doutrinação marxista é o que eu tenho tentado fazer pelos meus textos e, também, por minhas ações no cotidiano, o pouco que posso fazer. Isso não significa que esteja desmerecendo Karl Marx, Friedrich Angels e seus trabalhos, mas usando-os como auxiliares importantes e não como finalidade máxima, que é a justiça para a harmonia social.