Quando "vemos" a morte

Hoje no programa da Júlia, “As Tardes da Júlia”, foi lá uma jornalista relatar as experiências vividas quando realizou uma reportagem sobre o serviço de urgências. O testemunho dele comoveu-me bastante. Entre outras afirmações bastante marcantes, ela disse, que foi lá que viu pela primeira vez alguém morrer.

Para qualquer pessoa, até para mim, isto é bastante chocante. Ver alguém morrer, mesmo que não um conhecido é marcante.

Lembrei-me então do meu avô que faleceu à pouco mais de 3 anos. Eu, então com 13 anos vi-o a morrer. Ele faleceu a meu lado, e aquela imagem nunca mais me saiu da cabeça.

Eu e ele tínhamos uma relação de melhores amigos. Lembro-me perfeitamente de quando íamos dar os nossos passeios até ao parque e víamos cãezinhos abandonados. Devido à minha grande insistência o meu avô ponha-os na mala do carro. Chegava-mos a casa dele e dávamos-lhes um bom banho e um belo prato de comida. De seguida, e para grande tristeza minha (mas para grande satisfação da minha avó), levávamo-los até a um canil. Era ele que lia aquelas historinhas que tanto me faziam sonhar, era ele que me explicava o verdadeiro sentido das coisas.

Aos meus olhos, era a pessoa perfeita. Apesar dos seus noventa anos, mantinha uma aparência cuidada e elegante. Nunca o vi a queixar-se de nada nem de ninguém.

Contudo, esta saúde não duraria para sempre. Quando eu tinha os meus 12 anos e ele os seus noventa e poucos ficou gravemente doente. Penso que foi nessa altura que me apercebi de que ele não viveria para sempre. Que não o ia ter sempre a meu lado quando machucasse o joelho, ou quando precisasse de palavras de conforto.

Devido ao seu mau estado, ele teve que ficar acamado. A minha avó fez os possíveis para que ele ficasse lá em casa. Arranjou-lhe um quarto e comprou todos os materiais necessários (desde a cama até ás garrafas de oxigénio).

A minha avó, apesar de ainda conseguir fazer a lida da casa, não conseguia tratar dele. Sendo assim, contrata-mos enfermeiros e ajudantes para lidar com ele. Porém, à noite, era necessário que um dos filhos dormisse perto dele para o vigiar de perto. O meu pai nunca quis que eu ficasse lá de noite. Contudo, depois de insistir muito com o meu pai e com a minha avó, lá os convencia a passar uma noite com ele.

Foi a primeira e a última noite com ele.

O meu avô aparentava uma figura calma. Não abria os olhos, mas percebia o que dizíamos. Contudo, não ver aqueles olhos azuis e brilhantes a olharem para mim deixava-me entristecida.

Antes de me deitar ao lado dele, dei-lhe os medicamentos que antes o meu pai havia deixado lá para lhe dar. Triturei-os e depois dei-os pela sonda. Seguidamente, coloquei a minha mão sobre a dele. E então, ele aperto-a, como costumava fazer. Foi então que uma lágrima rolou pela minha face. Foi surpreendente ver, que aquele homem frágil, continuava a apoiar-me. Despedi-me dele com um beijo na face e desejei-lhe boas noites.

Na manha seguinte, depois de acordar, fui ter com ele. Mais uma vez dei-lhe a mão, mas desta vez ela não foi apertada. Foi nesse momento que senti que algo estava errado. Telefonei para minha casa a chamar o meu pai. Quando ele lá chegou mandou-me para casa. Apesar de ter os meus 13 anos, sabia o que estava a acontecer. Surpreendentemente não chorei. Não queria aceitar que ele pudesse ter partido e se chorasse era a confirmação disso mesmo. Passado algum tempo o meu pai chegou a casa com um ar abatido. Comunicou-nos o que tinha acontecido e aí chorei como nunca havia chorado. Massacrei-me durante semanas, talvez até meses, por me sentir a culpada daquela situação.

Senti que… não sei bem o que senti. Sei que me senti incompleta, vazia. Aquilo simplesmente não podia estar a acontecer. Não podia ter acontecido ao meu vô, ao homem que me ensinou a andar de bicicleta, que me ensinou a ler, que lavava os cãezinhos comigo, que me chamava “Queixinho da Rebeca”.

Não posso dizer que hoje não esteja triste com a morte dele, muito menos que a aceitei. Contudo sei que, apesar de ninguém o ver, era ele que estava a meu lado quando este ano passei de ano, quando chorei porque o meu cãozinho morreu, quando me ri quando o meu clube foi campeão, quando entrei para uma turma completamente nova. Apesar de não ser religiosa, sinto e acredito que tenho uma mão poisada na minha cabeça, que me guia para todo o lado. É a mão do meu vô, do meu melhor amigo.

10.09.07

(este texto já foi publicado aqui por mim. Mas sem intenção apaguei-o. Sendo assim voltei a publicá-lo)

Q Rebeca
Enviado por Q Rebeca em 12/09/2007
Código do texto: T649340