O ORNITORRINCO E O FORO PRIVILEGIADO

Explicar o foro privilegiado é quase tão difícil quanto descrever o ornitorrinco. Trata-se de um mamífero, mas que possui bico e patas de pato, põem ovos, cloaca - como as aves - esporões venenosos, como as arraias e são parecidos com a lontra.

Conta-se que quando o primeiro espécime de ornitorrinco foi mandado da Austrália para a Inglaterra no final do século XVIII, os cientistas pensaram que alguém estava pregando uma peça neles.

Não é exatamente isso que pensamos ao ouvir falar em foro privilegiado?

Ocorre que, nos tempos do absolutismo, o que predominava era a completa irresponsabilidade do governante cuja personalidade se confundia com o próprio Estado, a exemplo disso, tornou-se célebre a frase: l'état est moi - "O Estado sou eu", atribuída ao rei Luis XIV, da França.

O foro privilegiado, ou foro por prerrogativa de função, surgiu para garantir a responsabilização daqueles que exerciam altos cargos governamentais, tendo em conta não o privilégio pessoal, mas prerrogativas do cargo ocupado, durante o exercício deste, no desiderato de facilitar a responsabilização, a separação dos poderes, investigação e celeridade no julgamento.

Todavia, em que pesem as louváveis intenções políticas e históricas quando da criação do instituto, como sói acontecer no Brasil, tornou-se instrumento de impunidade e sórdidos privilégios, levando, na maioria das vezes, à situação abjeta de aqueles que detém o poder e os cargos de comando usufruírem da mora processual artificialmente criada pelos tribunais estaduais e superiores, provocando a prescrição e a decadência do direito de punir, ou do crime propriamente dito.

Desse modo, a decisão do STF que restringiu o agora "foro privilegiado" aos crimes cometidos durante o mandato e somente em função deste, representa sim um avanço no combate à impunidade, mas há ainda um longo caminho a percorrer, o qual somente será palmilhado pela efetiva participação popular.

Assim, o citado "foro por prerrogativa de função", ou "foro privilegiado", precisa voltar às origens e deixar de ser uma benesse para se tornar um dever de probidade do homem público, e isso somente vai acontecer quando tivermos instituições sérias e independentes.

Voltando ao ornitorrinco, sabiamente os cientistas bem o classificaram como mamífero, já quanto ao instituto jurídico em cotejo, em que pese a última decisão do STF, continua ainda a parecer mais um privilégio de alguns, contra a vontade da maioria.

Kleber Versares
Enviado por Kleber Versares em 04/05/2018
Reeditado em 12/05/2018
Código do texto: T6326997
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