BAIRRO DA LIBERDADE: PRAÇA DA FORCA

Num domingo, resolvemos ir almoçar no Bairro da Liberdade, em São Paulo, para comermos uma comida sino-japonesa. Maravilhosa!

Após o almoço, fomos andar pela Rua Galvão Bueno, visitando as diversas lojas de produtos da cultura oriental, como utensílios, comidas, especiarias, além de eletro-eletrônicos, utilidades domésticas, roupas, brinquedos e quinquilharias.

Após ultrapassado o Viaduto Cidade de Osaka, sobre a Avenida de Ligação Leste-Oeste, fomos atraídos por uma faixa que atravessava a rua, presa nos postes das luminárias em estilo japonês, anunciando que no Largo da Pólvora haveria um grupo de antigos moradores do Bairro e de pesquisadores do Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil - também sediado nas proximidades - para contar a histórica oculta do Bairro da Liberdade. Estava prestes a começar. Como adoramos história, fomos para lá correndo.

Como crianças, chegamos o mais perto possível e ficamos bem quietinhos, atentos à narrativa.

De forma alternada, os pesquisadores e os moradores começaram a narrar:

“No século XVII, aqui existiam chácaras que tinham como principais atividades econômicas a pecuária e o cultivo do chá. Pelas estradas que as cortavam passavam o gado e produtos que saiam do centro de São Paulo de Piratininga para as regiões próximas e para Santos, e aqui chegavam.

Mas esta região foi palco de uma prática de execução de condenados muito cruel: o enforcamento. Na verdade, eram enforcados indigentes, escravos e condenados à forca (os supliciados). A forca, que ficava na Rua Tabatinguera e depois no ‘caminho do Ibirapuera’ ou ‘caminho de carro para Santo Amaro’ ou, ainda, ‘estrada nova para Santos’, foi transferida para cá, Praça da Forca, em 1604. De Largo da Pólvora, a região passou a chamar-se Praça da Forca. Demoliu-se o armazém de explosivos e instalou-se a forca do último suspiro.

Em 1779, foi construído aqui o primeiro cemitério público. No centro dele foi erguida uma capela para acender velas aos tantos corpos que lá eram enterrados. A capela foi dedicada à Nossa Senhora dos Aflitos, daí ser conhecida como Capela dos Aflitos. Embora fechado o cemitério a partir de 1858 (quando inaugurado o Cemitério da Consolação, construído em um terreno doado pela Marquesa de Santos), a capela existe até hoje, localizada no Beco dos Aflitos, logo ali na Rua dos Estudantes, preservada o quanto possível, e ainda destino de romarias.

O fato mais marcante que ocorreu aqui foi em 1821. Há registros de que o cabo Francisco José das Chagas, o Chaguinhas, e o soldado José Joaquim Cotindiba foram acusados de comandarem um levante ocorrido no quartel do Primeiro Batalhão de Caçadores, de Santos, quando os soldados amotinados atacaram uma embarcação de bandeira portuguesa, buscando o recebimento de soldos atrasados e a igualação de tratamento entre os soldados brasileiros e portugueses. Sufocada a rebelião, Chaguinhas e Cotindiba foram sentenciados à morte por enforcamento. Para cumprimento, vieram andando do litoral até aqui. Passaram os últimos dias numa saleta na Capela dos Aflitos.

Chaguinhas já conhecia a cidade de São Paulo, pois nascera no Distrito da Sé, na Rua das Flores, atual Rua Gaspar da Silveira.

No dia 20 de setembro aconteceu o enforcamento. Primeiro, foi o soldado Cotindiba, que morreu rápido. Em seguida, alçaram o cabo Chaguinhas. Talvez porque a corda já estivesse gasta e já havia suportado o peso do soldado, na vez do cabo a corda rompeu-se; e uma segunda vez. O povo, acreditando que se tratasse de um milagre, gritou ‘Milagre! Liberdade!’ ‘Liberdade!’, pois era a vontade de Deus.

Na Revista do Instituto Histórico e Geográfico, volume 5, página 58, o historiador Antonio de Toledo Piza e Almeida conta que o povo comovido e indignado com a brutalidade e por não serem ouvidos, foram até o Palácio do Governo pedir clemência – o que era comum se conceder nesses casos -, mas não foram atendidos.

Alçado mais uma vez agora com uma corda improvisada de couro, Chaguinhas caiu ainda com sinais vitais. Os carrascos acabaram de matá-lo a pauladas. Contam ainda que depois seu corpo foi retalhado e a cabeça saiu rolando Ladeira da Forca abaixo até cair num buraco na Capela dos Aflitos onde eram depositados os corpos dos condenados.”

Senhor Oshinko, um dos moradores mais antigos do bairro, fez um aparte:

“Por causa do suplício dos mortos e dos ossos que ainda estão enterrados por aqui – e são achados toda vez que escavam os terrenos -, tem muitas estórias de fantasmas. Eu mesmo já vi o do Chaguinhas no beco. Mas ele é uma alma boa.”

Continuou o historiador, após agradecer a participação do Senhor Oshinko:

“Há um depoimento do padre Diogo Antônio Feijó declarando que testemunhou a execução, que se deu antes da apreciação do pedido de clemência levado ao próprio príncipe regente Dom Pedro I.

Evidente que foi um ato de violência, para servir de exemplo para outros soldados que ousassem desafiar os portugueses.

Mas o ato acabou se voltando contra o Governo, pois o povo, comovido, passou a adorar Chaguinhas como um mártir, um santo. Ergueu-se uma cruz no Largo da Forca, local do crime. Em 1887 foi construída a Capela de Santa Cruz das Almas dos Enforcados, ou Igreja das Almas. A partir de 03 de maio, a Irmandade de Santa Cruz dos Enforcados passou a fazer procissão com festa em homenagem ao aclamado santo do Bairro, ao qual são reputados muitos milagres. De Largo da Forca passou a ser conhecido como Largo da Liberdade.

Todos acham que o nome “Liberdade’ é em homenagem aos japoneses, que começaram a migrar para esta região a partir de 1920, quando passaram o ocupar os casarões deixados pelos portugueses e italianos; mas, na realidade, passou a ter esse nome a partir de 1905, quando a região foi desmembrada do Distrito da Sé, denominando-se Distrito da Liberdade, em homenagem à abolição da pena máxima. Mas, certamente também em referência ao evento histórico funesto.

Vejo pelo semblante de vocês que não conheciam essa história. Também ficamos surpresos ao descobri-la. E agora ficamos muito honrados em divulgá-la.

Fiquem à vontade para visitar o Bairro da Liberdade, em especial as duas capelas diretamente ligadas à história obscura do bairro.

Gratos por comparecerem e parabéns por se interessarem por História.

Até uma nova oportunidade, porque histórias temos muitas para contar.”

Saímos dali num misto de fascinados por essa história e inconformados pela privação do direito de a conhecermos. Quantas mais não sabemos ou sabemos malcontadas? Somos forçados realmente a desvendar a História para que a conheçamos, como se fosse um segredo intocável ao público, seu verdadeiro titular de direito.

Antes de irmos embora, participamos da última romaria à Capela dos Aflitos daquele dia. A antiguidade do lugar, o cheiro de velas, o burburinho das pessoas rezando, a história contada, talvez tudo somado, atraiu o espírito de Chaguinhas, e eu o senti sentado ao meu lado.

Rinaldo Saracco
Enviado por Rinaldo Saracco em 30/04/2018
Reeditado em 30/04/2018
Código do texto: T6323317
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