Beleza Descartável

“Quanto vai pagar ?”

“As muito feias que me perdoem mas beleza é fundamental.”

O início do poema Receita de Mulher, de Vinicius de Moraes, lançado em 1959,adquiriu um ar profético, como uma crônica do início do terceiro milênio. A cultura ocidental, com seu culto ao consumismo progressivo e à felicidade descartável , impõem uma beleza concreta e delineada em limites cada vez mais restritos.

A atualidade globalizada contrasta com o medo da exclusão, presente nos mais variados e inusitados segmentos da sociedade. Profissionais de diversas áreas se deparam com situações novas, algumas extremas e lamentáveis. A exigência explícita de um padrão de beleza reina até mesmo dentro de casa.

A psicóloga Michelle Fantinelli Loureiro de Oliveira acompanha pacientes na preparação para cirurgia de redução de estômago ( cirurgia bariátrica), medida extrema para obesos. “O que mais angustia esses pacientes é quanto a aceitação social, com padrões de beleza cada vez mais rígidos.Ser aceita pelos filhos e pelo marido não é mais suficiente. É necessário ser aceito por todos, ser um modelo para as outras pessoas”, destacou a psicóloga.

Caroline Santana Camurugy, 30 anos, supervisora de vendas, fez redução de estômago há dois meses por complicações da saúde , mas admite que a estética também foi importante.”É muito ruim quando a gente quer comprar uma roupa e não encontra o número e tem que ir em lojas com numeração maior” , declarou Caroline. Quanto ao fato de ter engordado 11 quilos para ter a indicação da cirurgia foi taxativa : “engordei 11 quilos , mas já perdi 18 em apenas dois meses.Eu já tinha tentado outros métodos , mas sempre engordava novamente. Já tive até convulsão. Estava tomando uma fórmula sem acompanhamento médico, e passei mal.”

A declaração de Caroline Camurugy não surpreende o endocrinologista Flávio Rosalém, acostumados a ouvir diversos relatos parecidos. Segundo o médico, a busca pela beleza, sem acompanhamento adequado, pode levar a sérios problemas de saúde.”Problemas como a anorexia e a buleimia sempre existiram, mas o aumento da preocupação com a beleza deixou essas doenças mais evidentes . São quadros com comprometimento físico e mental importantes.É necessário acompanhamento tanto clínico quanto psicológico , desses pacientes, com uma grande participação de família”, explicou o endocrinologista, e ressaltou “querer ter um corpo bonito é bom, mas ninca podemos perder a noção de que o mais importante é ter saúde.”

Na visão de Annor da Silva Júnior, professor de sociologia da faculdade Estácio de Sá de Vitória, está muito difícil a definição de limites, já que a busca da beleza está diretamente relacionada à conquista da felicidade.” Vivemos numa sociedade consumista , onde tudo vira mercadoria, inclusive os sentimentos e a beleza. Ser belo é um sonho de consumo, como uma carro ou um celular novo, e como estes, uma necessidade para não se sentir excluído. O medo da exclusão leva as pessoas a extremos, como a busca de cirurgias plásticas frequentes , ou o desenvolvimentos de doenças como a anorexia”, explicou o professor.

Ainda segundo Annor da Silva, a sociedade de consumo torna tudo descartável, o que representa um grande risco.” O conceito de felicidade tem mudado. A felicidade também se tornou descartável.O sujeito não sonha mais em ter uma casa ou um carro, sonha em poder ficar mudando para casas maiores e mais confortáveis, ou ficar comprando carros mais velozes e modernos. Alguém faz uma cirurgia plástica hoje e daqui há seis meses quer fazer outra porque a de hoje não vale mais. Alguém com necessidades extremamente mutantes tem grande chance de não conseguir satisfação, o que gera frustração, depressão , dependências químicas e até suicídio”, alertou o professor de sociologia.

Enquanto Vinícius de Moraes explicita a necessidade da beleza , Chico Buarque de Holanda vai além. Na música Tanto Amar,de 1981, declara “amo tanto e de tanto amar/acho que ela é bonita” deixando claro não só a necessidade da beleza mas como essa necessidade faz vermos beleza onde aparentemente não existe.

Paulo Sergio Silva, psicólogo, explica que belo é aquilo que encanta, algo que atrai além do estético e que na maioria das vezes “não temos consciência exata do que é”.

O psicólogo está preocupado com a transformação das pessoas e de seus sentimentos em objetos de consumo, e revela uma grande mudança no seu trabalho,” há dez anos as pessoas vinham ao meu consultório com conflitos emocionais ou ligados à formação cultural.Hoje quase todos estão insatisfeitos com o corpo”, declarou.

Eduardo Marcyano - oficina de redação III – 23/03/2007

Vinícius de Moraes

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Receita de mulher

As muito feias que me perdoem

Mas beleza é fundamental. É preciso

Que haja qualquer coisa de flor em tudo isso

Qualquer coisa de dança,

qualquer coisa de haute couture

Em tudo isso (ou então

Que a mulher se socialize

elegantemente em azul,

como na República Popular Chinesa).

Não há meio-termo possível. É preciso

Que tudo isso seja belo. É preciso

que súbito tenha-se a

impressão de ver uma

garça apenas pousada e que um rosto

Adquira de vez em quando essa cor só

encontrável no terceiro minuto da aurora.

É preciso que tudo isso seja sem ser, mas

que se reflita e desabroche

No olhar dos homens. É preciso,

é absolutamente preciso

Que seja tudo belo e inesperado. É preciso que

umas pálpebras cerradas

Lembrem um verso de Éluard e que se acaricie nuns braços

Alguma coisa além da carne: que se os toque

Como no âmbar de uma tarde. Ah, deixai-me dizer-vos

Que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro

Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e

Seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem

Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos então

Nem se fala, que olhe com certa maldade inocente. Uma boca

Fresca (nunca úmida!) é também de extrema pertinência.

É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos

Despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas,

e as pontas pélvicas

No enlaçar de uma cintura semovente.

Gravíssimo é porém o problema das saboneteiras:

uma mulher sem saboneteiras

É como um rio sem pontes. Indispensável.

Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida

A mulher se alteie em cálice, e que seus seios

Sejam uma expressão greco-romana, mas que gótica ou barroca

E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de cinco velas.

Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebral

Levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal!

Os membros que terminem como hastes, mas que haja um certo volume de coxas

E que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugem

No entanto, sensível à carícia em sentido contrário.

É aconselhável na axila uma doce relva com aroma próprio

Apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!).

Preferíveis sem dúvida os pescoços longos

De forma que a cabeça dê por vezes a impressão

De nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre

Flores sem mistério. Pés e mãos devem conter elementos góticos

Discretos. A pele deve ser frescas nas mãos, nos braços, no dorso, e na face

Mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca inferior

A 37 graus centígrados, podendo eventualmente provocar queimaduras

Do primeiro grau. Os olhos, que sejam de preferência grandes

E de rotação pelo menos tão lenta quanto a da Terra; e

Que se coloquem sempre para lá de um invisível muro de paixão

Que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio alta

Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros.

Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que se fechar os olhos

Ao abri-los ela não estará mais presente

Com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não vá

E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber

O fel da dúvida. Oh, sobretudo

Que ela não perca nunca, não importa em que mundo

Não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade

De pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma

Transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre

O impossível perfume; e destile sempre

O embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto

Da sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina

Do efêmero; e em sua incalculável imperfeição

Constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável.

Tanto amar

Chico Buarque/1981

Amo tanto e de tanto amar

Acho que ela é bonita

Tem um olho sempre a boiar

E outro que agita

Tem um olho que não está

Meus olhares evita

E outro olho a me arregalar

Sua pepita

A metade do seu olhar

Está chamando pra luta, aflita

E metade quer madrugar

Na bodeguita

Se seus olhos eu for cantar

Um seu olho me atura

E outro olho vai desmanchar

Toda a pintura

Ela pode rodopiar

E mudar de figura

A paloma do seu mirar

Virar miúra

É na soma do seu olhar

Que eu vou me conhecer inteiro

Se nasci pra enfrentar o mar

Ou faroleiro

Amo tanto e de tanto amar

Acho que ela acredita

Tem um olho a pestanejar

E outro me fita

Suas pernas vão me enroscar

Num balé esquisito

Seus dois olhos vão se encontrar

No infinito

Amo tanto e de tanto amar

Em Manágua temos um chico

Já pensamos em nos casar

Em Porto Rico

1981 © - Marola Edições Musicais Ltda.

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Eduardo Marcyano
Enviado por Eduardo Marcyano em 30/08/2007
Reeditado em 30/08/2007
Código do texto: T631595