Texto de carta a dono de revista sobre áudio

Cumprimentando V.Sa. e com desculpas pela citação com recurso à memória, lembro-me da história de um ouvinte que, dirigindo-se a Heifetz e admirado após uma apresentação do famoso violinista, perguntou-lhe como poderia agradecer-lhe pela satisfação que sentia após aquela audição.

Respondeu Heifetz, sério: em inglês.

Guardadas as devidas proporções e parafraseando Heifetz, encontrome em situação semelhante à do ouvinte, face às ponderações contidas em seu Editorial da edição de jul/04 e ao artigo do Sr. Mirol, ou seja, como manifestar o que penso sobre o assunto daqueles artigos: em português.

Alguns enfoques daquele Editorial foram:

“... o tratamento dado à música nos sistemas de multicanal ...” e a

“... dificuldade que é tentar dar à música o mesmo tratamento dado às trilhas de filmes,”

além da chamada da capa “Música multicanal: tem solução?”

Entre parênteses e com sua compreensão,poderíamos falar apenas de ouvir CDs de música, principalmente

música clássica, em convencionais sistemas estéreo, com a utilização de mais de 2 caixas?

Abordagem difícil, confesso. Há muito tempo que não converso com meus amigos de música clássica a

respeito de “surround-sound, multicanal, dCS e assuntos afins,” à vista da um tanto pouco convincente re-

ação de ceticismo sentido quando falava da utilização daqueles recursos. Ainda bem que a idade me vem

ensinando a jamais tentar abrir janelas abertas e nem fechar aquelas outras fechadas há muito tempo.

Se V.Sa. conservar a costumeira paciência que tenho observado ao responder às cartas de seus leitores,peço

que leia, por favor, os anexos que junto à presente, onde se pode observar historicamente, entre outros as-

suntos que dizem respeito ao teor desta carta, a maneira sensata como os cientistas da Blumlein-EMI/Bell

Labs, em 1931, fixaram os princípios da estereofonia, 25 anos antes de o recurso ser colocado à disposição

do público. Concluindo que muitos canais seriam necessários para capturar e reproduzir as complexidades

direcionais e espaciais dos eventos da música, mas por outro lado levadas em conta as limitações técnicas e de custo, investigaram as possibilidades de simplificação e concluíram que, embora 2 canais pudessem

apresentar resultados aceitáveis (consta que foi esse o adjetivo por eles empregado, sem conotação depre-

ciativa), 3 canais seria o mínimo desejável para formar a ilusão de um estável palco sonoro, detalhe oportu-

namente muito bem lembrado no artigo do Sr.Mirol.

No passado remoto, o que o Sr. Hafler estabeleceu com seu sistema —— de que tomei conhecimento al-

gum tempo depois de me haver mudado para São Sebastião-SP, em 1970, em artigo escrito por Ralph Hodges, lido na ocasião com incredulidade, descartado, esquecido no tempo, ressuscitado e instalado em 1978 após o seu 2º artigo sobre o mesmo assunto —, penso que foi o 1º passo do que hoje eu poderia

conceber como “surround sound”, uma vez que não era necessário aumentar a quantidade de canais.

Seriam os mesmos 2 do sistema estereofônico, com o som distribuído por mais 2 caixas adicionais, que, embora reproduzissem apenas diferenças de fase entre 2 canais estéreo, criavam, na sala de audição do ouvinte, a ilusão de um ambiente diferente daquele a que ele estava acostumado ouvindo apenas 2 caixas. Com o passar dos anos houve um enorme melhoramento nessa mesma ilusão de realismo, com a introdução dos sistemas realmente retardadores de tempo (bucket brigade, Delta, DSP etc.).

0 nome de batismo criado por J. Gordon Holt “SSfM – surround sound for music”, parece adequar-se

perfeitamente àquele tipo de equipamento (time-delay system) sobre o qual S.C.Foster escreveu artigo publicado em Hi-Fi Stereo Buyers’ Guide, em nov/dez/1976. Todavia, apesar do grande avanço tecnológico havido desde a introdução pela Yamaha, em 1986, do primeiro(?) equipamento que empregava processadores DSP e de muitos outros formatos de “surround system” posteriormente

lançados no mercado, o articulista John Atkinson (Stereophile, jan/99), considerou “pitiful” a qualidade do som que os sintetizadores produzem (é provável que ele, na oportunidade, se estava referindo ao sistema multicanal).

Todavia, S.C.Foster e seus colegas Bert Whyte, J.Gordon Holt, Peter W.Mitchell, Ralph Hodges, Ivan

Berger, Len Feldman, Julian Hirsch, Tom Gillett, Daniel Kumin, Ken C.Pohlmann, E. Brad Meyer e recentemente o competente e todo poderoso Floyd E.Toole e outros tantos papas formadores de opinião, a

julgar pelos elogios contidos em artigos que escreveram em inúmeras revistas, estariam equivocados na apreciação da qualidade das músicas que ouviram através de aparelhos que empregavam tecnologia “bucket brigade, PCM, DM” e principalmente “DSP”? Tomo a liberdade de juntar-me àqueles senhores, com o conforto e tranqüilidade de que somos adeptos do “surround-sound” muito antes da moda do “multicanal” e “home-theatre.”

Segundo Mitchell, escrevendo sobre teste de equipamento que empregava processadores DSP:

“ ... O efeito de um sistema retardador de tempo na qualidade do som reproduzido é ambos dramático e sutil. Ele é mais dramático quando o sistema é desligado e todo o ambiente tridimensional do campo sonoro parece desmoronar dentro da parede frontal da sala de audição. O som retardado não chama atenção por si próprio quando é ligado, mas os ouvintes experimentam um profundo senso de privação quando ele é removido. O som do convencional dois canais estéreo parece achatado,insípído e artificial, por comparação.

Por outro lado, ligando-se o sistema retardador de tempo (ele) não produz um imediato brilho de beleza sônica para recompensar seu investimento. Tipicamente, ele produz uma integridade de textura sônica gradualmente percebida e um espaço de audição aparentemente expandido. O efeito do atraso é simplesmente muito natural para ser espetacular. Se você caminhar dentro de um ambiente onde está em uso um bem-ajustado sistema retardador de tempo, você pode mesmo não estar ciente de sua presença.. Tudo simplesmente soa incomumente realístico ...”.

Em outra oportunidade Pohlmann parece ser bastante realista quando teria afirmado:

“... realmente não há nada sagrado a respeito de ouvir-se música através de apenas 2 canais estéreo.

A própria música ao vivo é reproduzida por uma multiplicidade de canais ¾ que são os instrumentos musicais ¾ e ouvida com inúmeras diferenças de fase (time-delay), em razão da própria distância de cada um dos instrumentistas de uma orquestra em relação aos ouvintes em um ambiente de concerto.” Dessa forma, continua Pohlmann: “... parece destituída de sentido prático a teimosia de alguns “aparelhófilos”, que consideram sacrilégio ouvir-se música através de mais de dois canais.” (O grifo é do próprio, segundo consta.)

Longe da pretensão de ser exegeta, às vezes chego a pensar numa possível deterioração terminológica no uso das palavras “surround sound, surround system, multicanal e home-theatre,” quando vejo as múltiplas acepções como elas são empregadas. Procuro entender o sistema “surround sound” da seguinte maneira:

Como todos sabemos, os equipamentos com processadores DSP não criam canais adicionais; apenas reproduzem, em caixas a que chamamos “surround”, a reflexão do som direto da música que está sendo tocada, acrescido às propriedades acústicas (sound field) de várias salas de teatro e de outros ambientes, em programas (ou funções de processamento) gravados no processador DSP. Fica, assim, a cargo do ouvinte, compatibilizar o gênero musical da peça que for escolhida com o programa (surround) contido no processador (Hall 1, Hall 2,etc.) e ajustar, criteriosamente, o local de colocação daquelas caixas e seu controle de volume, pois, aos sons ouvidos, é adicionada a acústica da sua própria sala de audição.

Na realidade, em um ambiente de concerto, os sons diretos quando refletidos nas paredes jamais são ouvidos distintamente, com identificação das fontes, mas apenas sentidos, pois nesse fenômeno psicoacústico reside a sensação de “surround”, envolvimento ou imersão. Os sistemas retardadores de tempo também tentam criar uma ilusão parecida com a que se obtém em um ambiente de concerto (natural que se dê os devidos descontos). O que se poderia estar perdendo? Definição? Detalhe? Foco? Não

sei, pois o som que tenho ouvido de 2 canais, em mais de 2 caixas e nesses últimos 26 anos é bastante agradável. O uso do cachimbo faz a boca torta? Existe a possibilidade...

Não obstante, com a utilização não muito apropriada do sistema multicanal, em gravações, é compreensível que se chegue ao absurdo citado por V.Sa. a respeito da audição do disco da cantora Diana Krall. Isso parece quadrifônico ou som ouvido em automóvel. Os Srs. Haas/Madsen devem ter-se virado nos túmulos quando “tomaram conhecimento” de que as gravadoras fizeram ouvidos de mercador e não estão levando em conta que o som direto, quando refletido nas paredes e até o ouvido do ouvinte, percorre uma distância muito maior do que a do som direto sem reflexão. Os sons dos instrumentos ou vozes reproduzidos distinta e separadamente em outras caixas que não as principais (como parece estar acontecendo com o sistema multicanal), não se beneficiam do processo de fusão do efeito Haas, sem o qual as especiais qualidades que um ambiente de concerto emprestam à música, quais sejam “loudness”, “fullness” e “three-dimensional depth,” não são aproveitadas.

Lamentável, sob todos os aspectos, a atitude das gravadoras.

A tendência irreversível de ouvir-se música em equipamentos para “home-theatre” — a que o amigo se

referiu em seu artigo, remando, no caso, para os sistemas de multicanal —, não deve ser acompanhada pelos audiófilos sérios de música clássica. Nada contra aqueles outros, também sérios mas apreciadores de filmes ou outro tipo de apresentação visual. As exigências dos dois sistemas são bem diferentes, pois ouvir música com equipamento retardador de tempo produz determinado resultado; utilizando discos gravados em vários canais, codificados no CD/DVD em 2 trilhas, reproduzidos com equipamentos que decodificam aqueles canais e dão personalidade independente às caixas “surround,” bem . . .

Quanto a ouvir-se música clássica com a utilização de DVDs, se a pressão exercida pelas gravadoras generalizar-se, seria desejável que o realismo sempre almejado pelos audiófilos pudesse ser alcançado com o emprego de um sistema com vários canais, desde a fase de gravação. Poderia ser um com 3 canais centrais, amplificados separadamente, mais a quantidade de canais de som refletido que forem julgados apropriados, também amplificados separadamente e com controles de volume individuais. Seria mais ou menos semelhante ao preconizado por Tomlinson Holman. O dele foi chamado de 10.2.

Àquele senhor, segundo o artigo anexo o maior problema não foi decidir a quantidade de canais, mas sim onde colocá-los. Será que nós, meros audiófilos, teremos condições de um dia implementar tal sistema em nossa casa para apenas ouvir música?

Mesmo tendo em conta todas essas considerações, pondera o Sr. Mirol sobre o que acontece quando se ouve um sistema multicanal com apenas ambiência nas caixas laterais:

“... uma sensação de estranhamento, algo como isto não é o meu sistema estéreo, com o seu plano sonoro todo na frente ...”, “... a claridade de foco parece, inicialmente, diminuir no palco e dar origem ao que, também de início, é percebido como palco menos preciso, menos tocado...”; e aos que assistem a concertos ao vivo “...sabem que tal precisão do palco sonoro e seus planos e foco não são os que ouvimos na realidade ...” e “... não existe tal precisão de foco e planos (o que não impede que, quando ouço estéreo em casa, prefira essa precisão porque me ilude um pouco mais).”

Resta saber se essas afirmações poderiam conduzir o audiófilo a um campo de areia movediça, cuja tábua de salvação seria uma resposta tranqüilizadora à pergunta: queremos ouvir música ou equipamento de som?

Sempre pensei que o sonho de todo audiófilo fosse conseguir o “mito do realismo de um ambiente de concerto” em sua sala de audição, porque os testes dos muito bem-elaborados equipamentos de som que sempre li procuraram comparar o som ouvido com o som da música ao vivo. A propósito, destaco trechos de artigo escrito pelo famoso Richard Heiser, publicados na revista Antena, décadas atrás: “... A arte da gravação — freqüentemente negligenciada — baseia-se no conhecimento de como estruturar as pistas acústicas de forma a aumentar a ilusão de realidade ou a experiência emocional evocada.”; “...Toda nossa milionária indústria de som depende, de uma maneira ou de outra, da suposição que a maioria das pessoas deverá experimentar o mesmo tipo de ilusão se sujeitas ao mesmo tipo de estímulos.”,

“... É minha opinião que antes de tentarmos responder à pergunta ‘por que não podemos medir o que ouvimos?,’ teremos que responder à pergunta ‘se não sabemos o que estamos tentando fazer, como podemos saber a melhor coisa a fazer?’”

Digna de todos os encômios a atitude altamente profissional do Sr. Mirol que, não obstante manifestar sua

preferência pessoal, nos brindou com preciosidades muito gratificantes, das quais seleciono: “... O que

percebemos no multicanal após um tempo de audição? Um acentuado realismo na reprodução. Não é que

diminuiu o foco. Pelo contrário,as imagens ficam muito mais corpóreas, porque ganham uma profundidade e corporeidade que estão menos claras quando ouvimos estéreo. A acústica provinda das caixas laterais é a que faz com que o evento sonoro da frente contenha somente o que originalmente já estava ali, ou seja, o grupo musical...”.

Há muito tempo venho-me aproveitando de um conselho dado por Julian D.Hirsch, que tem sido um bálsamo paliativo às minhas eternas indagações: “...I suggest, then, that you consider live and recorded music as two different media and enjoy the best of both...” Bem,enquanto a decisão de mérito

estiver no terreno do “paliativo,” vou continuar na aprendizagem musical ouvindo meus CDs com o auxílio do meu Yamaha-DSP.

Em 1997 resolvi aposentar meus Levinsons após mais de 15 anos de uso e ainda em bom funcionamento. Havendo adquirido novos Levinsons, resolvi também por em descanso minhas JBL L-300, que já trabalhavam há mais de 20. Quais seriam suas substitutas? Pura sorte haver guardado um artigo do

competente colunista Geoffrey Horn, publicado por Gramophone em abr/96, descrevendo os testes a que

havia submetido a TDL-Reference Standard-M, cujo crossover, em sua construção, contou com sua colaboração ao seu construtor John Wright.

Uma vez definidas as caixas principais, tirei cópia de uma série de artigos que arrolavam, entre outras, as

características aconselháveis a caixas acústicas para sistema “surround sound” ▬ deveriam ser do mesmo fabricante que as caixas principais e se possível do mesmo timbre ▬ , escrevi uma carta ao Sr. John encaminhando aquele material e, através de uma triangulação com nosso amigo Moisés, aqui de Brasília, consegui importar aquelas caixas como sistema principal e 3 pares para as adicionais. Infelizmente, não exatamente aquelas indicadas pelo Sr. John para “surround sound,” mas as cujo valor se enquadrava em

meu orçamento.

Para fazer alusão ao seu artigo “O velho problema com os graves”, acrescento que esses maçantes

detalhes sobre meu sistema estão sendo mencionados apenas para evidenciar o fato de que, havendo adquirido caixas “full-range,” como são aquelas “transmission-line,” penso haver contornado uma série de

problemas e de cuidados que devemos tomar quando utilizamos “sub-woofers.” Sabemos, todavia, que em música clássica graves realmente profundos existem em poucas peças musicais, como mostra o artigo que anexo apenas para ilustração, embora haja a possibilidade de não estar completa a relação.

Pondero que, como mero audiófilo, me sinto um tanto constrangido em comentar todos esses assuntos, tão banais a V.Sa. que os conhece em muito maior profundidade e com experiência profissional reconhecida. Tive essa iniciativa, porém, com o objetivo precípuo de fazer rascunho, “topograficamente falando,” do terreno por mim percorrido nos últimos anos, que não são poucos, e estabelecer bases para um entendimento sadio, pois procurando achar resposta à pergunta contida na capa daquela edição: “Música multicanal: tem solução?”, posso dizer: por enquanto, não sei, uma vez que meu propósito é o de tentar expor opção diferente para ouvir música, sem que esse caminho represente compromisso, fidelidade ou dogmatismo em relação ao uso de equipamento com processadores DSP.

Se V.Sa. houver por bem voltar ao assunto em sua revista, uma vez que acredito que a matéria possa merecer reflexão e considerações muito mais abalizadas de sua parte, peço-lhe encarecidamente, pelas razões de início citadas, que omita meu nome.

Parabéns pela sua revista.

VALPA
Enviado por VALPA em 03/11/2017
Reeditado em 22/05/2019
Código do texto: T6161303
Classificação de conteúdo: seguro