CAMINHO

 

         O sol estava a pino, o calor intenso a estrada de terra bem estreita era coberta por areia de cor rosa bem clarinha, os barrancos laterais com metro e meio de altura eram bem mais avermelhados, e sobre eles na beirada, as cercas de arame com mourões de madeira demarcavam as posses, também tinham algumas formações de rocha calcárea não muito grande ao lado daquele caminho que cortava uma grande região de reflorestamento.

         Propriedades rurais naquelas bandas já haviam se tornado raríssimas, assim vida humana por ali era muito pouca, somente de passagem e em veículos motorizados, ou então quando era época do plantio ou extração da madeira do reflorestamento, o que demorava vários anos.

         Como proteção do sol, ele tinha um chapéu de feltro do tipo de boiadeiro, mas já bem surrado pelo uso, podia ver na faixa de contorno acima da aba as marcas do suor com poeira da estrada. Camisa de mangas longas, calça de sarja de algodão, botinas de elástico, roupas bem típicas da região, tinha dois sacos atados um ao outro como se fosse um alforje para poder carregar sobre os ombros, e pareciam bem pesados, pois de quando em quando ele trocava de lado, aparentava cerca de quarenta anos, musculatura forte e a pele queimada, comum a pessoa que se propõe a fazer caminhada como essa.

          Daquele ponto da estrada, à cidade de onde imaginava ele viesse com os sacos de compras ficava a mais ou menos vinte quilômetros, e dessa mesma condição de estrada, somente a paisagem mudava um pouco. Em alguns trechos os talhões eram árvores de pinus, noutros eram árvores de eucalipto. A topografia variava muito, subidas e descidas, muitas curvas, em um ponto mais alto podia ver ao longe os raros sítios ou pequenas fazendas.Também numa região serrana, tinha paisagens muito bonitas, profundos abismos, nascentes de água e vegetação de mata atlântica.

         As histórias ouvidas sobre essa região, mesmo nos dias atuais ou anos dois mil, dão conta que nas fazendas era comum à noite, onças atacar os rebanhos, mais comum ainda era ver animais silvestres pela estrada, até mesmo lobo guará em extinção. Em determinados pontos da estrada, os locais tinham ganhado nomes condizentes com acontecimentos ali ocorridos, caso de alguma morte, algum acidente, alguém afirmando ter visto um fantasma, ali morava uma bruxa, onde a onça bebe água e etc., mas ali onde aquele homem caminhava com passos firmes e não demonstrava qual era o seu destino, chama-se cruz da santa, talvez porque tenha sido ali um cruzamento de estrada há mais de cinqüenta anos atrás, e também porque conta à história de uma velha que morava naquela região, e que até aos oitenta anos de idade quando morreu, ela curava as pessoas doentes com benzimentos e ervas, previa acontecimentos do futuro, dava sábios conselhos, e assim tornou-se tão famosa que havia até quem chamasse na até de santa.

          Neste citado antigo cruzamento, à direita depois de mais ou menos dois quilômetros, chega se a abeira de um abismo com quase cinqüenta metros de altura. De cima podia ver a mesma vegetação de reflorestamento, os raros descampados com gramado, uma casinha com fumaça saindo da chaminé, a estrada de terra, e ilhas de mata nativa com árvores floridas se destacando pelas cores. Em determinado ponto na rocha calcárea, abre-se um buraco feito pelas águas pluviais e que em forma de caracol descia até o sopé. Impressionante esse trajeto por dentro da rocha, escada em caracol feita na rocha pela natureza e de impressionante beleza, e antes da abertura da estrada, esse era o caminho desde o tempo dos índios, e se manteve por muitos anos.

           Do lado esquerdo era difícil aceitar que tivesse sido ali uma estrada, ainda mais um caminho, a vegetação havia incorporado totalmente, afinal tinha se passado cinqüenta anos.

          Aquele homem tinha caminhado mais alguns metros e parado a sombra de um eucalipto centenário a beira da estrada. Ali sentado e com o chapéu nas mãos, deixava ver o seu rosto, os seus olhos que demonstravam muita candura, muita simplicidade e humildade. Algum tempo depois ele levanta-se e caminha em direção a uma velha porteira de madeira que seccionava a cera de arame, a porteira era tão velha ou com tanta falta de uso que dava a impressão que se fosse abri-la ela se desmancharia, e dela seguia uma trilha quase tomada pelo mato e pela qual aquele homem caminhava agora. Depois de mais ou menos dois quilômetros a vegetação torna-se nativa, e como se fosse um túnel de mata a trilha seguia, e quando acabava de passar pela mata abria-se um campo de gramado, daí, já se podia ouvir e ver um cachorro grande latindo e correndo em direção ao homem, e quando chegou pulou nele e ambos trocaram carinho como se tivessem sentindo muitas saudades um do outro, naquele descampado via-se uma pequena casa de madeira ao lado de um paiol com apenas uma parede de tabuas e que servia para cobria um poço de água, um monte de lenha já cortada, e guardar algumas ferramentas.

        Tinha um cavalo, galinhas e porcos todos soltos no terreiro da casa, nos fundos passava um pequeno rio com águas bem límpidas, logo ma margem seguinte continuava o reflorestamento, tinha um pomar com laranjeiras, mixiriqueiras, bananeiras, mamoeiros etc. plantação de milho, de feijão, horta com alguns pés de couve, alface e outras verduras. A casa construída sobre pilares de troncos de madeira, deixando porões onde as galinhas faziam seus ninhos, tinha as tábuas das paredes quase sem tinta, as telhas estavam cobertas por um limo preto, o que juntamente com a disposição do pomar, da horta e das áreas de plantio, deixavam claro que tudo ali já vinha de muito tempo, de bem antes daquele homem de quase quarenta anos que descobrimos chamar-se Jerônimo, e que também era funcionário da empresa de reflorestamento, uma espécie de vigia, e ganhava seu salário por esse trabalho, vivia sozinho ali nos últimos vinte anos, desde a morte de sua mãe.

           Na solidão de Jerônimo, na mansidão de seu olhar pudemos descobrir histórias de uma vida que tão comum a alguns, podem ser extremamente interessantes a outros. Até os anos de mil novecentos e cinqüenta, quando morreu dona Cândida ou nhá Cândida como era chamada, ela morava ali naquele rancho, era a tataravó de Jerônimo, morreu praticando o bem, e sempre repetindo um pedido aos familiares, que após sua morte fechassem aquele caminho, era uma necessidade, pois ela profetizava uma tragédia na família. O caminho a que ela se referia, era o acesso a casa onde ela morava e tinha um movimento intenso de romeiros que vinham até de cidades distantes por onde a fama de nhá Cândida já tinha chegado.

           Atendendo seu pedido, e para evitar a grande quantidade de pessoas que ainda vinham mesmo após a morte de nhá Cândida, o caminho foi fechado, mas não antes de acontecer à tragédia profetizada em que morreu o pai de Jerônimo.

            Quinze anos depois da morte de nhá Cândida, tinha ainda quem a procurasse, e um viajante passou pelo caminho em busca de benzimentos, e não encontrando mais nhá Cândida, deparou-se com Ana, a mãe do recém nascido Jerônimo, e a atacou na tentativa de violentá-la sexualmente, num ato extremado Antonio pai de Jerônimo em defesa da honra da esposa acabou sendo morto pelo viajante numa luta.

         Cerca de vinte anos se passarão quando Ana, a mãe de Jerônimo morreu e o deixou sozinho, mas conhecendo toda a sua história. E Jerônimo mesmo assim não se tornou rebelde nem vingativo, pelo contrário, sempre compreensivo com todos acontecimentos, até mesmo perdoando o viajante que tanto mal lhe proporcionara. Todos estranhavam seu comportamento, conta-se que desde criancinha Jerônimo via e falava com sua tataravó Cândida já falecida há muito. Depois da morte da mãe, Jerônimo ia até a antigo caminho e lá ficava, horas em sua solidão, passava até noites inteiras, conversava com o nada.

         Num mundo ainda tido como irreal para muitos, Jerônimo era apenas louco, que não podia se relacionar com outras pessoas, mas na verdade, era um escolhido que passava por uma preparação para num futuro muito próximo assumir o lugar da tataravó, na prática da do mais puro amor.

         Nessa preparação ele podia ver e descrever as energias que ficaram impregnadas naquele caminho, de peregrinação e de fé, de dores, de angustias de esperanças, de lágrimas e sorrisos, o que é tão comum aos locais onde se concentram pensamentos em conflitos como: nas igrejas, nos cemitérios, em hospitais, nas prisões, em locais de tragédias etc. Ele via pedras que serviam de altar com vasos de lindas flores, pedras que serviam de assento para aleijados, pedras que serviam de mesa para a refeição. Plantas que exalavam perfumes e proporcionavam sombras frescas e deixavam a brisa suave e amena. Animais e insetos que circulavam levando ou trazendo suas cargas, formigas carregando folhas imensas, abelhas indo de flor em flor, ele falava com eles, ele tocava em tudo, ele andava, corria, abraçava as pessoas ali, dizia a elas palavras de esperança, sempre com os olhos cheio de candura, de humildade, de simplicidade, isso acontecia enquanto o seu corpo ficava estático sentado numa pedra e encostado numa árvore, esses acontecimentos é claro, de acordo com o merecimento de cada um.

          Chegada à primavera, nas árvores do reflorestamento a mudança era sutil, já na vegetação nativa havia uma transformação intensa, as cores mais variadas tomavam conta das atenções. No rancho de Jerônimo a vida seguia, a lavoura as criações, o contato com um semelhante dava se uma vês por mês, quando recebia o seu salário da empresa de reflorestamento, e quando das vindas à cidade para as compras.

            Na estrada a vida passava ao largo daquele lugar, a cruz da santa, quase ninguém mais lembrava dos acontecimentos, até que um dia como de costume, Jerônimo foi até o caminho e para sua surpresa, encontrou sentado em uma pedra e recostado numa árvore um homem de bastante idade, demonstrando muito cansaço pela idade e mesmo por ter conseguido caminhar pelo mato até aquele ponto. Ao aproximar-se, Jerônimo perguntou se ele estava bem, se precisava de ajuda. A resposta saiu bem baixinho quase um sussurro, entrecortado pela respiração ofegante, aquele velho implorava uma benção de santa Cândida, como se fosse o último ato de sua vida. Sabendo ser um momento extremado, Jerônimo sem outra escolha, deixou se passar por santa Cândida, pois era ela quem aquele velho enxergava, e estendendo a mão sobre a fronte daquele moribundo fez o benzimento, nesse exato instante Jerônimo iniciava sua missão de benzer, confortar e amparar seus semelhantes. Também naquele momento, ali chegou seu pai Antonio sua mãe Ana, para darem o perdão e ajudar naquele momento tão difícil para aquele velho homem, o viajante que no passado fora o motivo de desgraça, ou teria sido um instrumento na preparação de Jerônimo.

             As árvores de pinus juntamente com os eucaliptos, produzem um perfume agradável, depois que se acostuma com ele, mas você pode deixar-se acostumar ou não.        

                Com o concentimento do autor: Paulo C. Rozeto.

Que apesar de ter partido, continua vivo em nossos corações.