Não era bolsa família, não. Era o cestão.
A época era os anos 80. Nos anos de poucas chuvas. Quando não se criava nada nem arroz, feijão, milho, mandioca... A solução era as emergências e eu ainda menino participei desta época de muito sofrimento vivido pelos sertanejos, por quem não tinha nada para comer, por quem não tinha nada a ser posto no fogo de manhã. Era muita gente que vivia a mesma situação que a nossa. Compartilhávamos o mesmo pão que o diabo amassou: fome, tristeza, muito sofrimento.
Não cheguei a trabalhar porque era muito pequeno, mas acompanhava meu pai e meu irmão na labuta diária quando participavam dos grupos. As tarefas eram muitas. Às vezes, antes de começar perguntavam. Se iam tampar o buraco das velhas ou iam abrir o caminho das novas. Eram muitos os buracos das estradas velhas a serem reparados, mas precisavam também abrir novos caminhos que melhorasse o acesso a outras comunidades. Quando estavam trabalhando parecia um formigueiro, uns com picaretas, enxadas, chibancas, alavancas, marretas e outros apenas com as mãos carregando pedras, carrinhos de mãos, padiolas e um apenas observando o movimento, era o tal do feitor, responsável pela equipe.
O trabalho era muito, já o pagamento era pouco, mas era pegar ou largar. Aos que não aguentavam o trabalho pesado o sofrimento era maior ainda, pois não restava outra opção para garantir o seu sustento e da família, ia depender da caridade dos familiares que aguentavam o trampo e sempre encontrava um filho de Deus que ajudava.
Faziam de um tudo. Consertavam estradas, construíam novas, faziam pequenas barragens, poços cacimbão e até mesmo açudes.
Quem estivesse arregimentado no serviço, além do salário no final do mês, ainda recebia o famoso cestão, uma espécie de cesta básica com alguns itens essenciais para a alimentação. No dia do recebimento era o maior sofrimento do mundo, nesse dia eu não acompanhava meu pai no serviço, porque ia com a minha mãe pegar o cestão. Saiamos de casa ainda bem cedo. Caminhávamos alguns quilômetros até o grupo escolar ou a capela da comunidade em que morávamos. Como não tinha horário certo meu pai mandava a minha mãe receber o cestão, ás vezes passávamos o dia inteiro e eu ficava só ali admirando a fileira de chinelo que se formava para indicar a posição de cada um na fila. Era chinelo de todo jeito umas mais novas, outras mais velhas. Tinha as de borracha, tinha as de pneus, tinham as de marca Tyo tyo, Havaianas, Japonesas e as mais simples com o cabresto de uma cor e outro de outra cor, as que o cabrestos era uma embira de jatobá ou uma tira de couro e os que não tinham chinelo e colocavam um pedaço de pau para marcar o lugar. Quando o caminhão chegava era um rebuliço só. Um alvoroço tomava de conta do lugar. Era um empurra, empurra danado. Até que todo mundo se ajeitava na fila e começava a distribuição. Minha mãe pequena, franzina, arrumava uma força tremenda e saia arrastando o cestão para um local e ia ali esperar o meu pai para poder levar para casa.
Em casa era festa. Todo mundo curioso querendo saber quais eram os itens. Todo mundo com uma fome danada e minha mãe ia retirando do saco de fibra as coisas que havia ganhado. Uns vinham empacotados o leite, o macarrão, a farinha, alguns enlatados como a sardinha e outros a granel como o feijão borogodó e o feijão preto. Nesse tempo os meninos tudo tinham o bucho quebrado, não sei se eram somente as lombrigas, pois não havia remédios para vermes ou era por causa do leite que era tomado pelos pobres. Um leite meio amarelado ou esverdeado, não sei! O feijão era posto no fogo ainda de madrugada numa panela de ferro em cima de uma trempe. Passava o dia todo cozinhando, era preciso um fecho de lenha inteiro, quanto mais fervia, mais o bicho endurecia e para ser consumido era necessário ser pisado do pilão.
Hoje temos uma juventude que reclama de tudo e reclamam de barriga cheia, pois nunca passaram fome de verdade. Nunca foram obrigados a comer um alimento de qualidade duvidosa por ser o único disponível e, às vezes, passam o dia todo sem comer porque querem, pois não querem, muitas vezes, comer um arroz com feijão. Naquele tempo um feijãozinho de corda com arroz novo era um manjar dos deuses e hoje muitos acham que é comida de pobre, se bem que atualmente comer feijão virou moda, espero apenas nunca mais passar por todo aquele sofrimento nem ver meus filhos passar o que passei. Que possam valorizar o que têm e tenham a humildade de dizer que são ricos das graças de Deus. Pois não há nada mais valioso do que está com a barriga cheia e com muita saúde e disposição para poder trabalhar.
Pedro Barros.