Violência simbólica
 
Luiz Carlos Pais

 
O conceito de devolução assume uma importância diferenciada na teoria das situações didáticas, formulada por Guy Brousseau, e também explicita a existência de um paradoxo com o qual o professor defrontará, ao optar por essa linha de referência da Didática da Matemática. Por um lado, prevalece na consciência docente a intenção de que o aluno seja o “autêntico sujeito do seu conhecimento”, que o caminho para aproximar o conhecimento aferente do saber de referência deve ser percorrido por seus próprios passos e com os recursos que ele efetivamente domina. Porém, por outro lado, isso não significa que o aluno possa enveredar por um rumo qualquer.
 
Existe uma clara expectativa de que ele aprenda o que está “correto” em relação ao saber de referência. Ele não deverá concluir, por exemplo, que o quadrado da medida da hipotenusa de um triângulo retângulo é diferente da soma dos quadrados das medidas dos dois catetos. A liberdade do aluno será controlada. O professor é levado a comunicar o saber sem necessariamente revelar sua parte essencial, pois é o aluno que deverá sintetizá-lo para que possa, por si mesmo, vivenciar essa experiência.
 
Essa relação paradoxal decorrente, por um lado, do constante exercício da devolução, conduzida pelo professor, e, por outro, da autonomia do aluno, traz embutida a violência simbólica. Uma noção proposta pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, na década de 1980, e que recebeu ampla aceitação em diferentes domínios das ciências humanas e sociais. Bourdieu foi um autor de origem humilde, cuja família vivia na zona rural da França, e que muito cedo passou a interessar pelos diferentes tipos de dominação presentes na sociedade e produziu uma obra antropológica de grande importância para entender o poder existente nas instituições e de suas estratégias de implantar a dominação sobre o sujeito. A violência simbólica está presente em toda instituição, que cria, em seus sujeitos, relações de medo, dependência e sofrimento.
 
Em particular, ao projetar essa noção na prática pedagógica, percebe-se que a criança ao ser levada para a escola passará por uma experiência coercitiva. Deverá rezar “o catecismo” previsto na apropriação da cultura escolar amplamente aceita e apoiada por uma extensa rede de instituições. Além do mais, entre todas as disciplinas escolares, aquelas referentes às ciências exatas – tendo em vista a parte mais explícita da objetividade – são aquelas nas quais a suposta violência simbólica existiria de forma mais contundente e ostensiva.
 
A aculturação do aluno referente ao saberes matemáticos deixa transparecer a crença ou a tradição de que se aluno tiver sucesso na aprendizagem ela terá maiores chances de socialização, conseguir um bom emprego, passar no vestibular, assim por diante. Essa “violência” não está circunscrita à educação matemática e o domínio da língua pátria também se associa como outro padrão fundamental de aculturação. Por vezes, há ainda um discurso e uma prática dominantes, no sentido de menosprezar a importância das referidas disciplinas.
 
Pierre Bourdieu defendeu ainda que a violência simbólica serve de instrumento das instituições sociais para o exercício do poder simbólico por elas detido. Um dos críticos desse conceito é o filósofo Jürgen Habermas, por não aceitar o termo “violência” para se contrapor aos símbolos como criações abstratas. É uma crítica que se enfraquece diante do crescente movimento mundial em defensa das pessoas que são vítimas de diferentes tipos de violência, nem sempre de ordem física, tal como o bullying e as várias formas de humilhação, muitas vezes, impostas pelo poder econômico. Entretanto, retornando à origem da questão que motivou essa incursão de ordem sociológica ao estudar ao paradoxo contido na devolução didática, cumpre observar que a didática clássica talvez seja um reduto bem mais questionável em termos da suposta violência simbólica do que as práticas “mais construtivistas” tais como as previstas nas teorias da didática da Matemática.