O FIM DE TONHO

Já passavam das 18 horas quando o telefone tocou e Dona Marita, aos prantos, anunciou a morte do seu marido:

Senhô Delgado! Meu Deus! Me passa com o Senhô Delegado!! É urgente!

Alô

Seu Delegado! Socorro, me ajuda! É Tonho! Ele tá morto!

Há quase dez anos trabalhando como delegado da pequena cidade de Dracena, estava acostumado a receber ligações como essa. O motivo da morte era quase sempre por acidente de trabalho e/ou embriagues e, considerando o histórico do Seu Tonho, tinha certeza de que esse era o caso.

Calma Dona Marita! Calma! A senhora já chamou a ambulância?

Falei com ninguém ainda não! Me ajuda Seu Delegado! Tonho tá caído lá fora, do lado do trator. Ele não tá respirando.

Dona Marita, eu entendo mas a senhora precisa chamar a ambulância. A Policia não pode mexer no corpo antes do médico confirmar a morte. E ele ainda pode estar vivo.

Socorro, Seu Delegado!! Meu marido, Seu Delegado! - gritou a mulher aos prantos.

Comovido pela dor daquela senhora resolvi ajudar.

Ok, ok! Eu mesmo vou ligar para a ambulância mas a senhora precisa se acalmar! Tome uma água com açucar até que chegue alguém.

Disquei apressado para o único hospital da cidade e mesmo sem saber o endereço exato da Dona Marita consegui informar com precisão o local do ocorrido:

Na fazendo do Seu Tonho. A senhora está lá aos prantos. Disse que o corpo está lá jogado. Deve ter sido agora mas não tenho certeza. Por favor se apressem! A senhora do falecido está muito abalada.

Sabia que Dona Marita e Seu Tonho eram pessoas humildes e que tinham alguns problemas financeiros. Para piorar, Tonho era alcoólatra e as vezes agressivo mas mesmo assim era pai dos 3 filhos daquela mulher que acabara de se tornar uma viúva precoce. Tocado pela situação peguei o carro e dirigir até a fazenda da viúva.

No caminho me lembrei de algumas vezes que os dois foram parar na minha delegacia por problemas conjugais. O episódio mais recente foi há uns 6 meses atrás quando Dona Marita ordenou que eu prendesse o seu marido que após 2 dias desaparecido retornou bêbado, cheirando a cerveja e a perfume barato, como ela mesma dizia.

“Pobre senhora” - pensei. Além de cuidar aquelas crianças praticamente sozinha precisava aturar aquele homem.

Quando cheguei à propriedade a ambulância já estava de saída e infelizmente nada pôde ser feito para salvar a vida de Tonho. Fui notificado que como uma formalidade, o corpo seria encaminhado a autópsia para confirmar o motivo da morte que todos já desconfiavam: cirrose hepática ou alguma intoxicação pelo uso indiscriminado de alguma substância proibida, bastante utilizada em áreas rurais como essa.

Dona Marita já recuperada alegrou-se ao ver-me.

Seu Delegado! Doutô! Que honra. Vem que vou preparar um café fresquinho.

Não se preocupe comigo Dona Marita. Passei apenas para me certificar de que a senhora e as crianças estavam bem. Prometo que outro dia volto com mais calma para conversarmos e tomarmos este cafe.

Mesmo com a noite cainho pude no capricho dessa simples fazendeira. Do lado de fora da casa se notava o quintal limpo, as galinhas presas e alimentadas e um pequeno jardim com algumas flores roxas que pareciam petúnias.

Tonho estava longe de ser um marido exemplar mas era ele quem saía todos os dias ainda de madrugada para regar aquele pasto ralo onde as poucas vacas magras se alimentavam. Era ele quem ordenhava o leite para consumo da família e cuidava da terra da maneira que podia. Agora, sem ele por perto a vida dessa mulher seria ainda mais dura pois além das tarefas do lar e dos filhos ela teria que prover para o sustento daquela família.

Alguns dias depois recebi o laudo da autópsia confirmando que o óbito havia ocorrido pela ingestão de um poderoso pesticida chamado Gramoxone, altamente letal e já pouco utilizado mas que ainda persistia em algumas plantações.

Meses se passaram e como de costume, pelas manhãs a caminho da delegacia costumava parar em uma das fazendas da região para tomar um pingado com pão tostado. Foi em um desses dias que escutei a senhora comentar sobre o queijo de Dona Marita.

Mas esse queijo da Mariquinha tá cada dia melhor.. Quer provar não Seu Delegado?

Movido pela curiosidade, desviei o caminho ao chegar na fazenda de Dona Marita levei um baita susto! Aquela casinha bem cuidada mas velha havia sido ampliada, o pequeno jardim de flores agora rodeava agora toda a propriedade e o pasto estava mais verde do que nunca com vacas e bezerros se alimentando em abundância. Ao lado da cerca haviam dois jovem rapazes ouvindo atentamente as instruções de uma mulher em cima de um cavalo que não era ninguém menos do que Dona Marita! Aquela mulher simples estava irreconhecível com o cabelo bem penteado, roupas novas e até um pouco de maquiagem ensinando à aqueles dois rapazes como fazer para tirar o leite das vacas.

Assim que percebeu minha presença Dona Marita abriu um sorriso e pulando do cavalo veio em minha direção abrindo os braços.

Seu Delegado! Que alegria receber o senhô aqui! Passa, passa! Simbora entrar e tomar um cafezinho! Mariaaa!!! - gritou. Traz o bolo de fubá e passa um café fresquinho. Rápido mulher!

Percebendo a minha cara de espanto Dona Marita começou a falar.

Ah, Doutô Delegado. O senhô não sabe como foi difícil depois que o Tonho se foi.. Com as crianças então, nem se fale. Mas o seguro de vida que o homem deixô ajudô a ajeitar as coisinhas por aqui um pouquinho. Agora sobra tanto leite das vaquinha que até queijo tamo fazendo e vendendo pra vizinhança. Dá pra acredita?

Ao terminar o café me levantei para ajudar a levar as xícaras até a cozinha e notei que um bonito vasinho das mesmas petúnias que estavam no jardim enfeitavam a bancada. Cheguei mais perto e um pó branco que cobria algumas pétalas entraram por minha narina. No mesmo instante comecei a sentir-me enjoado e preferi ir embora rapidamente..

Já o carro, a caminho da delegacia e ainda sufocado por aquele cheiro parei por uns minutos no acostamento. Pensei no que poderia ter causado aquela reação e foi quando um pensamento cruzou minha cabeça: estaria Dona Marita fazendo uso indiscriminado de uma substância venenosa e proibida?

Sabia que o certo mesmo seria abrir o caso e investigar o ocorrido mas pensei novamente na vida e nos filhos daquela mulher e em todo sofrimento que ela já passou nas mãos daquele homem.

Melhor deixar pra lá. Algumas coisas se resolvem naturalmente.

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