Diario de viagem - Sicilia
Há 5 meses eu fazia uma promessa a mim mesma e hoje começo a honrá-la. De volta à Sicilia. Quero encontrar cenários de um filme que me tocou muito e da sua belíssima fotografia. Quero reviver e aquele mundo de belezas controversas em "Nuovo Cinema Paradiso", mas desta vez com o sol estival batendo na pele. Por onde começo? Como vou fazer isso? Bem, na verdade poupei os detalhes nos meus planos, deixei as expectativas de lado e não tenho endereços, mas tenho uma vontade imensa de novas descobertas.
Palermo
Descendo as escadas do avião junto comigo, o olhar de um monte rochoso espia os turistas chegando em Palermo para pintar a cidade com câmeras fotográficas, mapas e oportunidades aos garçons de praticar o inglês do cursinho. Aquele monte tem um olhar curioso e não se importa nenhum pouco em parecer tão invasivo. Acho que lhe entendo... quantas joias naquele seu territorio! Eu em seu lugar também sentiria a necessidade de julgar os que vem de fora. Então, para não parecer ingrata as boas-vindas peculiares, lhe ofereço uma piscadela seguida de alguns elogios com o olhar. Me pego tão distraída com aquele monte enxerido que, por um momento, havia esquecido o tímido aeroporto que fica por ali. Mas, felizmente, para me orientar, me chama atenção uma centena de pessoas seguindo na mesma direção... "indo buscar suas bagagens" pensei... "esperem, também quero minha mochila". E aqui cabe um adendo: ombros e colunas vertebrais pelo mundo à fora agradecem viagens no verão. Menos panos, menos peso.
Cheguei à esteira que girava sem bagagem alguma por alguns minutos. Em torno dela, a mesma centena de pessoas que havia me indicado o caminho até ali apòs meu lapso de atenção. Tenho a impressão de que, eventualmente, até os parlemitanos que trabalham no aeroporto se distraem com o monte enxerido. A consequência por hoje foi esquecer de checar a informação nos painéis indicativos, nos deixando esperar na esteira errada por alguns minutos. No jornal do dia seguinte, provavelmente vão contar o fato dizendo que o povo dali é desorganizado; mas será que os autores do jornal estão cientes da existência daquele monte enxerido do aeroporto? Talvez não se distraiam com nada.
Acho que me perdi em devaneios no percurso do aeroporto até o centro da cidade. Quando me dou conta, já vejo barraquinhas de doces coloridos, sanduíches e outros tipos de lanches em um ponto da cidade. Ao fundo, na pequena praça, um parque de diversões e suas luzes piscantes seduzem cada criança que passa por ali. Penso por um segundo que poderia ficar por aqui, só o tempo de experimentar aquelas amendoas caramelizadas, mas logo lembro que Bagheria me espera e preciso pegar o trem das oito. Eu é que não sei o que esperar de Bagheria.
Bagheria
Sociável o desconhecido lugar de sessenta mil habitantes com feiçoes de cidadezinha do interior. Jà na plataforma da estação, ela faz questão de se apresentar:
- Prazer, Bagheria. Não obedeço ordens facilmente, parei no tempo e me recuso a mudar. Assim é mais fácil e as coisas funcionam do meu jeito.
Eu respondo parte espantada e parte intrigada:
- Oi Bagheria, o prazer é todo meu! Não tenho preconceitos, mas prefiro usar o caminho subterrâneo da estação ao invés de atravessar os trilhos como vocês.
Fico constrangida pela placa que proíbe o atalho pelos trilhos, ela humilhada na frente de todos que estão por ali. Ninguém se feriu no descumprimento das regras ferroviárias, mas a autoridade da sinalização já estava morta há tempos.
Hà alguns metros dali, lá estou eu pelas ruas de Bagheria. Ruas longas que se estendem de norte a sul, e ruelas que escondem pedacinhos tímidos da cidade. Ruas que se dividem em V's, as mesmas que expoem as rachaduras e o desgaste nas casas onde reina o salmão claro. Luzes amarelas e silêncios de jantar. Para alguns, talvez, silencio de assustar, pois diz a fama da cidade que ela abriga alguns humanos tortos e ameaçadores. Em um certo ponto ouço um som. Beatles, mas nada de John, Paul, Ringo e George. Seguindo as notas, chego numa pequena praça onde se erguia arrogante uma grande igreja. Là também estão três ou quatro bares a dividir uma banda que toca no centro do local. Não pergunto e ninguém me fala, mas do corpo da cidade, aquela praça é certamente os ouvidos. Fico imaginando quantas vezes por dia se ouvem tocar os sinos da igreja.
E para quem ainda não está convencido de que Bagheria é deveras simpática, agora conto a surpresa que vem logo depois de deixar a praça dos Beatles Bagherianos. Sigo em frente por muitas direitas e pouquíssimas esquerdas até chegar ao ponto onde fogos de artificio haviam sido preparados para me dar as boas vindas! "Que gentileza, nao precisava" pensei. Assisto ao show muito agradecida. Tudo acontece em frente à uma outra igreja, esta de aspecto demasiadamente moderno para a cidade. Tem uma santa sendo carregada por alguns fieis fora dela, acho que està alì para assistir aos meus fogos também, assim como a multidão em volta dela. Sò achei estranho que ninguém se preocupou em olhar para a homenageada... "apenas uma cultura diferente", concluì. No fim, valeu a pena mesmo assim. Obrigada, Bagheria, vou até aceitar uma de suas 'panelle', embora seja uma bomba de carboidratos e gordura saturada, admito que com limão fica uma delicia.
Não sò de belezas vive Bagheria. Preciso ser franca ao detalhar o que vejo em seguida: faltam alguns pedaços do mapa em cobre exposto em uma placa no centro da cidade. Cobre tem seu valor, cobre pode ser matéria-prima para sabe-se là quantas coisas... ou cobre foi apenas uma coincidência nas mãos de vândalos sem causa. Preciso ser ainda mais franca e expor que ouvi relatos de uma mafia violenta que se faz presente nas injustiças sociais contra o povo Siciliano. Imagino que esses humanos se sintam à vontade em Bagheria. Nos tempos antigos era mais fácil operar os negócios ilícitos; e como já havia me dito a cidade assim que cheguei, ela parou no tempo. Algumas raízes são na verdade ervas daninhas.
Mas não quero dar adeus à cidade nesses termos. Por isso, preciso também dizer que na noite anterior à minha partida, Bagheria me é generosa quando, depois de um dia quente de verão, me oferece uma brisa fresca no terraço com vista para o Montagnollo.
Termini Imerese
"Oi, Termini Imerese. Me diga em que parte sua Tornatore gravou cenas de 'Nuovo Cinema Paradiso', por favor?". Mas que surpresa a minha quando muitos de vocês não sabem responder. Me pergunto "Se eu busco Nuovo Cinema Paradiso, que tipo de 'paradiso' buscam vocês?" O senhor da Tabaccheria talvez busque um biscoito para disfarçar a fome das 11, mas sem arruinar seu apetite para o almoço. O frentista, quem sabe, um trabalho onde tenha ar-condicionado ao invés de ficar sentado na cadeira de plastico embaixo do sol escaldante, esperado um cliente a cada hora. Mas a senhora de salto tímido, vestido floral azul e leque na mão, sentada do banco do ponto, busca poder avistar o seu onibus quando aparece na curva. Quase tomo um susto quando, resmungando, ela grita para que eu me mova e abra caminho para a sua visão. O tom da sua voz me diz que em nenhum momento ela pensou que eu poderia não ter consciência da obstrução visual que a minha posição estava causando a quem está sentado no banco do ponto. Penso em algumas palavras para aquela senhora, mas não falo nada. Talvez seja tarde para ensiná-la um pouco de tolerância, vai saber quantas pessoas em pé na calçada ela encontrou, e quantas dessas não se moveram... Enquanto isso, o siciliano que me acompanha não pode deixar de responder sua tempestuosidade tìpica da região e contesta a reclamação da senhora de vestido floral azul; ambos embarcam em uma breve discussão de egos, que logo acaba quando o ônibus, avistado por todos, chega para nos levar até a parte alta da cidade.
Lá está Chiesa di Santa Chiara, lá está a biblioteca e lá está o 'chiostro' que vi nas duas vezes assistindo ao filme. Lá está Totó se apaixonando por Elena, no que seriam os corredores da escola que frequentavam. Fico analisando onde haviam posicionado cada câmera, e como fizeram para que o local parecesse muito maior do que é realmente. Bela escolha Tornatore.
E se estamos na parte alta da cidade, em algum lugar por aqui teremos uma visão do que ficou là embaixo. Não demora muito e chego ao Belvedere de Termini Imerese, local que expõe as águas cristalinas do litoral e algumas rochas de formas únicas que surgem por alì. A proporção é sempre a mesma: quanto maior a perspectiva do que vemos, menos ar entram em nossos pulmões. Nesse momento, peço que algum leitor me de uma explicação cientifica desse fato: por que avistar a imensidão da natureza nos tira o folego? E por que as pessoas continuam buscando Belvederes para perder o folego?
Jà os parques não mudam muito ao redor do mundo... árvores, flores, fontes, banquinhos, e crianças gritando a liberdade com suas bicicletas, bolas e patins. Acho que o que também não muda é a linguagem dos pais, essa é universal. Qualquer estrangeiro que visse aquele homem estendendo a mão para o menino de olhos azuis e pernas inquietas, saberia exatamente o que ele estava gritando. Talvez eu entenda agora porque dizem que o amor é uma linguagem universal. Amor, pais e filhos são sinônimos. E nesse momento eu lembro que não falo com o meu pai há alguns dias, ligarei pra ele assim que chegar de viagem.
Antes de deixar Termini Imerese, acabo descobrindo algumas escadas, rampas, vasos de flores e paredes descascadas encantadoras pelas ruelas da descida. Em um angulo sem nome, ouço uma voz feminina que acompanha um som latino em volume alto. Sem timidez alguma, talvez nem passe pela sua cabeça que uma turista qualquer, ao passar pela sua ruela, seja capaz de ouvi-la cantar desafinadamente. Se o que está cozinhando estiver em harmonia com a alegria desse angulo sem nome, acho que ficarei por aqui esperando um convite para o almoço. Mas logo lembro que preciso pegar o trem para Cefalù.
Cefalù
Turistas por todo lado. Não parece que a combinação das sílabas soa como tranquilidade e delicadeza? Se lida em italiano - o "c" com som de "tch" - se torna ainda mais doce, Tchefalu. Ao avançar em direção ao mar, confirmo que a cidade segue o som das suas letras. Não sei o que veio primeiro, mas a harmonia é indiscutível.
Está tudo exatamente como lembro do filme, cada casa ao fundo, as cores, o sol batendo na água. Mas, de alguma forma, Cefalù não parou no tempo como Bagheria. É viva só a memoria. A cidade está em 2015. E os barcos na costa, em um 2015 muito pròspero. Perto dalì, avisto a plataforma onde a projeção de cinema ao ar livre se deu no filme, consigo rever os espectadores que se aproximam a bordo de seus barquinhos de madeira para ver as cenas no muro de rocha. Está tão quente que decido me jogar naquelas águas. Hora de relaxar.
Saio do mar e, na pequena extensão de areia, uma senhora que troca "r" por "l" se aproxima, mostra seus olhos puxados e oferece serviços de massagem. Meu orçamento de viajante não inclui a massagem dessa senhora insistente, tenho que recusar. Quando se afasta, posso perceber um homem - de mesmos olhos - que a observa de longe, controlando seus movimentos. Penso que seja o "chefe" da massagista. Mas não é estranho um trabalho autônomo precisar de gerenciamento de terceiros? Você pode deduzir muitas coisas dessa situação. A minha conclusão eu tenho, mas não declaro neste diário pois meu filtro da certeza não me deixa falar com base em uma observação distante e sem evidencias concretas. Cefalù turística, Cefalù de oportunidade para muitos, ou para poucos que controlam muitos.
Ciao Cafalù. Rumo à Palermo.
Na metade do percurso, o trem pàra em um estação familiar. Aquelas flores violetas que acompanham a cerca... eu já as tinha visto antes. Sim! Nuovo Cinema Paradiso. É a estação de Lascari, onde no filme mostrava o nome fictício «Giancaldo». Cada estação é um inicio e um fim - embora hoje, Lascari seja o meio de Cefalù e Palermo pra mim. A estação de Lascari foi o fim de Sicilia para o jovem Totò, enquanto ouvia as duras palavras de despedida do seu amigo Alfredo, e abraçava forte sua mãe e irma.
Fim da linha. Palermo novamente. Prazer em te rever. Eu disse no inicio que ficaria algumas horas aqui se pudesse, então resolvi voltar e passar pelo menos uma noite antes de ir em direção à Catania. Mesmo que você queira me subornar com seus 'palazzi' de dimençoes exageradas para o meu olhar brasileiro de 500 anos. Mesmo que você exiba sua diversidade cultural em cada esquina e 'mercato'. Mesmo que você consiga sempre me convencer de comer mais um sorvete ou um 'canollo' quando jà cheia do almoço. Ainda assim posso ver que esqueceram de varrer as ruas e juntar as latinhas, garrafas e maços de cigarro. E ainda posso ver aquele cidadão que briga por um esbarrão involuntário como se fosse uma tentativa de homicídio, protagonizando uma cena de guerra de egos ignorante. Mas, aparentemente tão natural, que me faz vê-lo comicamente. As raízes de uma cultura invisível e inevitável como o ar que respiram.
Devo confessar, porém, uma coisa tola. Por breves momentos me aproprio das ruas da cidade, caminhando por elas de um jeito que nenhum turista de primeira viagem faria. Cruzo esquinas sabendo o que virá depois, esnobo o mapa e não peço informação a ninguém. Mas, surpreendentemente você ainda tem um desconhecido para mostrar. Encontro uma parte que respira no seu centro agitado. Um jardim dito “inglês” que escracha rachaduras nos caminhos de pavimento, mostrando, ironicamente, que aquele canto verde da cidade não tem nada da impecabilidade inglesa. E no jardim também encontro vovó Willow, de Pocahontas. Não está nos meus planos reviver dois filmes dos meus filmes preferidos, mas é uma bela surpresa.
Outras coisas se repetem. E engraçado como quando você olha de longe, todos os outros são personagens fixos e planos em um romance escrito somente sobre você. E engraçado como atribuímos aos outros identidades estáticas para reafirmar nossa própria complexidade. Mas será mesmo? Será que aquela senhora de vestido floral verde - sim, senhoras sicilianas adoram vestidos florias - que pede esmolas pelas ruas de Palermo é a mesma de 5 meses atrás? Lá está nas mesmas ruas, sendo expulsa dos mesmos bares, abordando as pessoas com as mesmas palavras. Ela carrega um olhar que diz "te encaro e te vejo... e você? Me vê?". Não sei responde-la. Provavelmente a resposta é "não como deveria", pois a unica coisa que realmente respondo pra ela é «Scusa, non ce l'ho» (desculpa, não tenho), numa mentira deslavada e desconcertante para meus questionamentos. Não, eu não sei o seu nome, eu não sei se possui um teto sob o qual possa dormir durante a noite e eu não sei as razões que a levaram a pedir dinheiro em troca de elogios baratos. Mas sei que ela tem as respostas para tudo isso, e eu não perguntei. A ùnica certeza que tenho é que seu vestido floral verde e olhar invasivo não são os de um personagem fixo e plano em narrativa alguma.
Está chegando o fim de Palermo, depois de testemunhar alguns egos impacientes buzinando no transito ocupado da via Roma, chego na estação. Tudo pontual. Tudo conforme as regras que disfarçam o caos humano ditam. Tres horas na janela do trem, e numerosos terrenos cultivados que me diziam o mesmo que o enxerido do aeroporto de Palermo. Volto meu olhar para dentro do vagão e o direciono para o outro lado do corredor. Me pergunto "Será que aquela moça sentada do outro lado já tem planos para Catania?". Quando se viaja, reconhecemos similaridades facilmente, "é claro que ela viaja sozinha como eu", deduzo. Acho que vai ficar só por isso... acabo não falando nada. E difícil saber se o outro esta tao aberto quanto você. E o receio de soar inconveniente fala mais alto.
Ao descer na estação central de Catania, enquanto nòs duas colocamos as mochilas nas costas, o relógio da plataforma 3 mostra 16:23, dois minutos adiantado chegou o regional de Palermo a Catania. E ai, alguns acasos insistem em acontecer, eu e a menina, que hà pouco sentava do outro lado do corredor do mesmo vagão, caminhamos algumas centenas de metros na mesma direção, ela alguns passos atrás. De repente, me toma uma onda de espontaneidade siciliana, é quando me viro e pergunto à moça "Are you following me?" (você está me seguindo?), no intuito de puxar assunto com uma piada sem graça. Antes que ela se sinta ameaçada por uma viajante sem noção e marrenta, já vou logo dizendo que é brincadeira e continuo o papo com "Is this your first time in Catania?" (é sua primeira vez em Catania?), engatando um papo em inglês que dura algum tempo antes que ela me pergunte "Where are you from?" (De onde você é?). Respondo que sou do Brasil mas moro na Italia. Sua voz muda, de sua boca agora saem sons de consoantes e vogais familiares que me dizem "Então por que estamos falando inglês?".
Viajar tem dessas surpresas. Catania pode inspirar ataques de espontaneidade e uma brincadeira criada nas pressas pode ser o começo de ótimas experiencias compartilhas. No momento nem lembro das bolhas d'água que se formaram na minha sola, ou dos ombros cansados, que inicialmente agradeciam os panos leves do verão, mas que agora indicam que caminhei distâncias que ultrapassam recomendações diárias.
Existe um contraste interessante em Catania que faz chamar atenção de todos que caminham atentos pelas ruas do centro, mas não daqueles que saem de seus hotéis e embarcam no City tour bus por algumas horas. É o contraste entre suas construções e ruas escurecidas de rochas vulcânicas, e a vivacidade que as pessoas portam no caminhar e no falar.
Catania também é generosa conosco. Na primeira noite não tem fogos de artificio para nos dar as boas vindas mas a cidade nos abre a porta do castelo e exibe uma performance de jazz gratuita. Lugares limitados, músicos talentosos. Eu, a moça do trem - que agora é Sabrina, uma parceira de viagem -, meu host Felipe, e Mia, uma sueca que assistiu à dois jogos da Copa do Mundo de 2014 no Brasil. Esse era o quarteto que formava 2,6 por cento do publico presente na area central do castelo.
Enquanto ouço o som acústico do jazz ecoar naquelas paredes que insistem em ficar de pé desde o seculo XI, sinto como se as notas saídas daqueles instrumentos de forma curada me soprassem o rosto, como um frescor que alivia a sensação de um dos dias mais quentes da estação. Jazz condicionado.
Depois de abrir o apetite com os músicos do conservatório dos Beneditini, rumamos ao centro. Bares, risadas, danças, cerveja, mais música, 'cipolline' para forrar o estômago. E após um convite do Felipe, Mia nos olha com preocupação e espanto: um bar onde a cerveja custa muito pouco, e segundo meu host, o local funciona como lavagem de dinheiro para a mafia. Parece clichè, mas não posso negar, no bar vejo alguns elementos que portam esteriótipos cinematográficos de criminosos: cabelos compridos amarrados na nuca, calça jeans e camisa preta, cigarro na mão e partes de tatuagens à mostra, tudo isso acompanhando uma expressão franzida e rude de sombrancelhas espessas desajeitadas. "Será que financio uma organização criminosa enquanto curto minha noite em Catania? Que diferença faria?". A pergunta mais cretina do revolucionário preguiçoso.
Antes de iniciar os próximos eventos, outro adendo: roteiros de viagem são muito úteis para organizar destinações e atividades do viajante, mas se engana quem pensa que devem ser seguidos à risca. O fato é que eu queria ver o Etna de perto, e Catania aparecia no meu roteiro por isso. Porém, quem sentir a temperatura desse domingo ensolarado talvez me dê razão pela escolha de partir em direção à Acitrezza, litoral norte de Catania, ao invés de visitar as duas crateras mais acessíveis do vulcão da Sicilia.
Chegamos. Eu, Felipe e Sabrina. Tem alguma coisas na água que me toca as entranhas, ainda mais se for salgada... talvez pela imensidão. E tem alguma coisa em águas cristalinas em torno à ilhas rochosas que revitalizam e amaciam um domingo quente de julho. Parece uma ilusão de ótica proposital da natureza, o canal com 10 metros de largura entre as duas ilhas maiores me deixa ver as rochas do solo marítimo, me fazendo acreditar que dá pé se eu tentar esticar meu corpo. Mas percebi que era ingenuidade minha pensar aquilo quando vi um banhista se atirar da mesma altura que a largura do canal. Segundo o italiano de sunga branca e pele de brasileiro que nadava por ali, são mais de 15 metros de profundidade naquela àrea. Uma grande e mesquinha inveja me domina por um instante, "essas ilhas deveriam ser apenas turísticas, não é justo que alguém as tenha como quintal de casa".
Passado o momento de revolta e as horas de "paradiso", tornamos à cidade para começar nossa noite nos bares do centro. Mas antes de beber, passamos para mais umas 'cipolline', esses salgado é tão delicioso que eu abro mão de experimentar um quitute diferente na minha ultima noite em Catania, só para ter o prazer de come-lo novamente. Estômago cheio, partimos para o bar onde nos esperam amigos do meu host Felipe. Eles estão em quatro e nos cumprimentam com um entusiasmo contagiante. As duas brasileiras se sentem em casa no bar Mezzaparola no meio de Catania. As cervejas começam e a minha narrativa embaça a partir de agora. Risadas, piadas, perguntas, curiosidades, afinidades, debates, caminhada, outro bar, sentados, compartilhamos experiencias, a cada frase uma descoberta do outro, a cada canção que sai das caixas de som uma sensação ou memoria de sensação diferente. E é ainda nesse clima que me despeço de todos, como se nos conhecêssemos à uma vida. Volto pra casa do meu host e durmo em prestações, parte assimilando tudo que ganhei de novo, e parte preocupada em não ouvir o despertador e perder o voo na manhã seguinte.
Viajar é assim, um pouco aqui, um pouco lá, querendo estar em todos os lugares ao mesmo tempo.