Duas pipas no céu
Nós éramos apenas duas crianças, eu e meu primo. Acordávamos de manhã e nossos pais nos levavam ao clube para que pudéssemos soltar pipa. Enquanto eles tomavam cerveja e discutiam coisas de adultos, nós só estávamos preocupados com nosso papagaio de papel.
Aqueles passeios só eram o começo da nossa paixão por pipas. Depois nos reuniríamos quase todos os finais de semana para lidar com linha, varetas, papel de seda e rabiola.
Construíamos nossas próprias pipas, belas pipas. E depois da elaboração, ficávamos orgulhosos do trabalho quando víamos nossa filha desfilar no céu e atrair os olhos de todas as crianças do bairro.
A pipa é um brinquedo muito divertido, mas poderia ser mais que diversão e se tornar competição. Quem capturar a pipa do outro nos ares via seu arsenal de pipas crescer. Quanto mais pipas, mais status. Mas para ganhar pipas nos céus era necessário utilizar-se de alguns recursos, eu falo do cerol.
Cerol, mistura de cola com vidro moído, que ao se passar nas linhas tornavam as disputas mais eletrizantes. E a nossa pequena produção de pipas começou a ter que contar sempre com esse ingrediente.
Após confeccionar as pipas, íamos para a rua de cima, pegávamos dois postes de rua, circulávamos a linha por eles e passávamos cerol. E íamos nos divertir. Eram muitos desafios.
Quando chegavam as férias, o trabalho era intensificado. Praticamente um mês só respirando pipas.
Num dia, eu e meu primo resolvemos passar cerol na linha na rua de baixo, ao invés da rua de cima, ao qual estávamos habituados. Perto de um bar. E nesse bar tinha um pessoal estranho, bem mais velho, mas que gostavam de pipas também. Meu primo, mais comunicativo que eu, enturmou com o pessoal e compartilhamos do mesmo cerol para nossas pipas, enquanto conversávamos.
Eles fumavam, um cigarro fedorento que os deixavam sem ar por alguns segundos. Eu, mesmo na minha inocência, podia não saber o que era o cigarro, mas sabia que aquele pessoal não se tratava de pessoas boas para se envolver. Meu primo, não se importou, quis a amizade deles e começou a soltar pipa com eles.
Isso começou a ser rotina, e eu resolvi parar de soltar pipas. Tinha perdido meu maior parceiro de pipas para os homens estranhos. Era o fim da minha paixão com pipas e comecei a me distanciar do meu primo, já que ele tinha amizades que eu não aprovava. Acabaram as férias, fui estudar e aos finais de semana procurava outras atividades, jamais soltaria pipa novamente.
Meu primo soltava pipas. Mas agora também fumava o cigarro que os estranhos fumavam. Cada vez mais foi deixando de sorrir e olhar pro céu, como fazíamos. Agora entrava em poço cada vez mais fundo.
Os estranhos utilizaram ele, por ser menor de idade, para cometer furtos. Ele começou a pichar. Roubar. e enfim, foi apreendido, ainda menor de idade.
Quando o vi novamente, senti que ele era tão estranho quanto os estranhos da pipa. Vi que ainda éramos primos, mas não éramos mais amigos.
Ele completou 18 anos, permaneceu com amizades estranhas, permaneceu no mundo do crime. E foi condenado por assalto a mão armada, preso por 8 anos. Hoje está em outro Estado, tentando se restabelecer. Não tenho ideia se conseguiu.
Nesse tempo eu estudei, fiz faculdade, me formei, arrumei um bom emprego, fiz pós graduação, prosperei.
Vidas opostas, dois primos, mesmas possibilidades na vida. Diferentes escolhas.
Duas pipas no céu, que se distanciaram uma da outra. Uma voou alto. A outra foi aparada pelo crime e caiu lentamente em terras sombrias. Apenas a minha pipa no céu.