Barata
Acordei.
Era um transe provocado pelos metais, pelo conforto e pelo sono. Deve ter sido o terremoto um pouco mais forte que os demais. Pude olhar ao meu redor e percebi que não estava sozinho, dentro da minhoca de metal. Não eram só cheiros, só membros, nem apenas calor, eram pessoas comigo ali dentro do verme composto por aço, plástico, fios e luzes.
Fechei meu livro e a primeira coisa que vi foi um pé. Um pé negro. Rachado e envelhecido, enrugado e maltrapilho sob ele uma sandália de plástico com detalhes de flor, mas como eu disse não era só um pé, era uma pessoa. Eu sei que é, mesmo sendo difícil de reconhecer.
Tudo e todos são fragmentados dentro dela, ela que se move entre os terremotos, que engole e depois vomita, que segue o mesmo caminho mas que pode te levar para qualquer lugar. O perfume e o mal cheiro se misturam, são apenas um. A beleza e a feiura, a vulgaridade e a elegância. Todos isolados e ao mesmo tempo, juntos.
Peguei meu bloco e comecei a desenhar, logo eu tão perfeccionista só podia retratar de tal forma aquela forma sinistra que me causava um transtorno. Dentre um abalo e outro a imagem ficava mais disforme, mais perfeita em sua imperfeição. Tirei meu fone e interrompi os metais, o sono já havia se desvanecido e o conforto não estava mais presente. Só havia o pé-pessoa, eu não ousava olhar para o todo. Ninguém ousa.
Quantos podem ter pés bem cuidados? Com calçados confortáveis? Com unhas bem cortadas? São poucas pessoas que realizam os sonhos que todo mundo sonha. Geralmente são os mesmos. Os mesmos sonhos, as mesmas pessoas.
As luzes se apagaram. A lagarta entrou num túnel. Quando ela saiu algo aconteceu. Não sei se minha visão ficou embaçada ou se cochilei enquanto passava pelo breu, mas de repente tudo mudou. Olhei para meu próprio pé e lá estavam as flores de plástico, as rugas, as unhas lascadas. Vi todos os pés imperfeitos em sua perfeição, como meus rabiscos. Todos negros, doloridos, encalados. Exatamente como o meu.
Acordei.