SE EU ME CHAMASSE CARMEM

SE EU ME CHAMASSE CARMEM

Quando nasci, numa época em que só era conhecido o sexo de uma criança quando ela era dada à luz, meus pais se detiveram ante o impasse da escolha do meu nome.

Por minha mãe eu me chamaria Carmem, se a esse nome não se opusesse o hábito ancestral da família paterna de venerar os avós, dando a eles os mesmos nomes.

Hortêncio e Emília, meus avós mereciam essa homenagem e como Emílias já existissem na família, acertou-se que eu seria Hortência, e assim fui chamada: Não “Hortênsia” como a flor, mas Hortência, feminino do cognome varão.

E daquele avô vivido em outro século, recebi como herança, não apenas o nome, mas eflúvios de uma responsabilidade decantada, apelos para viver com decoro, agir com honestidade, praticar a prudência.

Se eu me chamasse Carmem, outros conceitos perante a vida eu talvez avaliasse. Diferentes arcanos designariam meu destino, outras seriam minhas buscas e metas, outros arrebatamentos talvez eu tivesse.

Se eu me chamasse Carmem, paisagens e horizontes, para mim desconhecidos, talvez hoje me sorrissem. Por força do nome “Carmem”, (quem sabe?), eu fosse atraída a viver na Espanha, onde tantas Carmems se aglomeram. Então eu poderia amar um toureiro que a mim, carinhosamente, chamasse Carmencita, que por meu amor tombasse numa arena sangrenta frente a um touro cruel.

Vendo fotos antigas tento adivinhar: se por detrás do deslumbramento do olhar da criança que fui, ou da ardente ansiedade revelada no olhar da minha passada juventude, que outras emoções expressariam meus olhos se eu me chamasse Carmem.

A suave modulação do escandir do meu nome sugere sensibilidade às conveniências, disposição ao recato, busca à simplicidade.

Mas sinto, na contra mão, Carmem, com sua tônica forte, irreverente, clamando por seus vaticínios não cumpridos.

E no palco onde essas contradições se defrontam, atributos que são meus se distinguem: dedos longos, unhas frágeis, cabelos curtos, pele fina, olhos glaucos... Mente libertária, insubmissão, determinação, impaciência frente à mediocridade, antagonismo à injustiça, pragmatismo... Desconchavos, diletantismos; paradoxais insolvências do coração, gosto pelos bons pratos, arte de versejar.

Defeitos e qualidades, sentimentos e opiniões que me são intrínsecos e jamais mudariam, ainda que eu me chamasse Carmem.

hortencia de alencar pereira lima
Enviado por hortencia de alencar pereira lima em 30/05/2014
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