Para além de Eva
Vez ou outra ainda me questiono sobre a história ou mito (como muitos chamam) de Adão e Eva. Qual o pano de fundo para esse enredo confuso em que Eva, pobre coitada, é julgada e culpada de um pecado original, sem direito a defesa, pela humanidade. E que todos somos herdeiros desse pecado.
Eva, uma mulher (a primeira? desnecessário dizer: inteligente); um homem (só), Adão. Ia me esquecendo, uma serpente. E o paraíso. Somos herdeiros de um pecado original, sobre quem recai essa culpa, afinal? Seria a serpente a culpada? Apesar de serpente, eu penso que não. Se Adão tem alguma culpa? Não acredito, era apenas um homem, sequioso de desejo e com alguma curiosidade. Pobre da Eva, é dela a culpa?
O delito de Eva: desobediência X transgressão? Eva foi movida por uma curiosidade, teimosia, rebeldia naturais? Provou do fruto proibido (a árvore do conhecimento?) e instigou a Adão a fazer o mesmo ou Eva foi uma mulher que pensou (seria este o pecado?), que tomou uma atitude, que desejou sair do marasmo, que quis dar continuidade aos propósitos divinos?
Eva – uma história contada por homens! Uma tentativa brilhante de responsabilizar a mulher, na figura de Eva, por todos os males e transgressões cometidos pelo homem. Milhares de anos se passaram, o discurso parece ainda tão igual.
A história de Eva me faz pensar que a condição feminina, de a mulher ser considerada a responsável e tantas vezes culpabilizada pelos abusos cometidos por uma sociedade doentia teria origem nesta narrativa, tanto que a figura da mulher passou a ser associada à serpente, ao mal, ao próprio diabo. A mulher - desde então - tem sido retratada de forma inferiorizada, ela é a prostituta, vadia, piranha, piriguete.
Na Idade Média, ela foi levada à fogueira, torturada pelo fogo da Inquisição. As mulheres foram consideradas “bruxas”, mas eram simples camponesas, parteiras, assistentes, detentoras de algum saber. Essa “caça as bruxas” durou mais de quatro séculos e matou aproximadamente 9 milhões de pessoas, 80% eram mulheres (in www.espaçoacademico.com.br). Os responsáveis, detentores do poder, eram homens religiosos, que professavam uma falsa fé.
Nos anos 60 e 70, tempos modernos, com a eclosão do movimento feminista, as mulheres lutam pelo princípio de que os gêneros são diferentes, mas não desiguais. É de Simone de Beauvoir, escritora francesa, filósofa existencialista, a frase “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”. Compreende-se que a mulher não tem um destino biológico, mas como todos tem um destino humano. Homens e mulheres hão de se reconhecerem como semelhantes, como propagou Beauvoir há mais de meio século.
No entanto, as mulheres, nos tempos hodiernos, apesar de muitos avanços, sofrem com as diferenças de sexo. Basta lembrar que são mutiladas em países da África com a extirpação do clitóris, coibidas a usar um véu que lhes esconde o rosto, em países islâmicos; e quando violentadas, em todo o mundo, ainda assim, são responsabilizadas por seus agressores.
As estatísticas comprovam que a violência contra as mulheres é crescente e aterradora. Dados atuais da ONU indicam que cerca de 70% das mulheres sofrem algum tipo de violência no decorrer de sua vida, sendo a forma mais comum, a violência física, praticada por parceiros íntimos; uma em cada cinco mulheres se tornará vítima de estupro ou tentativa de estupro, no decorrer da vida; dois milhões de meninas estão sob a ameaça de sofrer mutilação genital e, em algumas sociedades, o número de “homicídios em defesa da honra”, pode chegar a cinco mil mulheres (dado anual).
Podemos culpar Eva e as mulheres por esse cenário?
Definitivamente, não podemos responsabilizar Eva por esses horrores, nem tampouco culpá-la de um pecado original, somos criação divina, dotados de inteligência. Sua história, não esqueçamos, foi contada e escrita por homens e o ponto de vista masculino, exceto o de Millôr Fernandes, que pintou a figura de Eva na crônica “Discurso de Deus a Eva” de forma magistral “Tu nasces sábia, Eva, e o homem rude e primário”, infelizmente, sofre de uma ideologia que deseja ser dominante.
O mito de Eva nos serviu de ‘leitmotiv’ para incitar uma reflexão. Até quando as mulheres sofrerão discriminações e abusos – físicos e psicológicos - e quando a liberdade de expressão e comportamento será respeitada? Haverá, um dia, igualdade?
Infelizmente, embora adentremos ao século XXI, numa chamada modernidade líquida, a sociedade em que vivemos persiste em ser machista, sexista e privilegiar o homem. O que desejamos, contudo, é viver em uma sociedade livre de preconceitos e discriminações, libertarmo-nos das amarras de um senso moral construído por uma cultura machista, muito aquém dos nossos olhos, mas que embrutece as relações interpessoais.