Cú com acento?

Cheguei a conhecer uns poucos deles, vetustos muros aqueles,

tão reles, de adobe de minha terra. Mais encorpados que os

muros de tijolos e, logo a seguir, os pre-fabricados, eles vinham

perdendo espaço numa rapidez alarmante.

Geralmente estavam associados aos casarões estilo colonial e

vinham compartilhando o mesmo desafortunado destino

daqueles sobrados: o desmanche pra construção de prédios mais

modernos, mais leves. E de lambuja, o aproveitamento da

madeira que algum excêntrico da capital ou de capital mesmo

construir ou ornamentar sua mansão, seu sítio, que situação.

Uma particularidade sobre esses muros de adobe é que eram

chapelados, cobertos de telhas portuguesas, que além de enfeitá-

los lhes ajudavam a preservar a própria integridade, pois a

chuva e a umidade não se lhes penetravam a ponto de os ir

dissolvendo gradativamente.

Papai explicou-me como se fazia o adobe - e até hoje não quis

ao dicionário para confirmar, estudar-a etimologia da palavra

adobe - pois o "velho" entende bem que duro com duro não faz

bom muro e já deu seus murros e fez seus muros na vida.

No meu caminho para o grupo escolar passava pelo menos por

meia dúzia deles, ou de seções que vinham resistindo ao

desbravamento desse brave new world - que teimosamente, ia

chegando à minha pequena Velha Serrana, já não mais tão

serena.

Como o grupo em que estudei era um sobrado colonial

majestoso, ainda existente, a que teria sido a casa de uma

famosa potentada do lugar, uma Dona Maria Tangará, os muros

que o cercavam ainda formavam parte daquele harmonioso

conjunto. E bem altos adicionavam imponência ao então

estabelecimento de ensino, Grupo Escolar Professor José

Valadares. Pena é que a meninada de outros grupos vendo

nossas iniciais bordadas nas camisas J. V. não perdoava: éramos

todos josé viado. E como se odiava aquele antigo e desprevenido

professor!

Mas a garotada, independentemente do grupo a que pertencia,

agitava e agia. Com pedaços de giz apropriados na surdina, ou

mesmo com pedaços de carvão, de caco de telhas não deixavam

os muros em paz, grafiteiros assaz e contumazes que já se

mostravam os mais salientes. E a palavra preferida,

monossilábica, começava por c e terminava por u. E lascavam

um acento grave nesse u, apesar da reforma ortográfica e das

admoestações das mestras.

Quiçá, por algum temor reverencial de um pretérito muito

menos que perfeito, poupavam, geralmente os muros de adobe

dessa infame inscrição. Mas não os salvaram não.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 05/10/2013
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