A MESTIÇA DOS BÚZIOS

Armação dos Búzios. Pensam que o nome desta cidade está relacionado à pesca de baleias e peixes, ou às carapaças vazias de moluscos, sei lá. Nada disso! Eu estou aqui desde muito, muito tempo. Houve uma época em que vários imigrantes portugueses aportaram nestas terras, pelos mais diversos motivos ambicioneiros. Um deles, chamado Manoel Jacinto, logo se destacou entre os outros. Era um pescador habilidoso, mas não gostava de ensinar suas técnicas de pescaria aos habitantes das redondezas; só o fazia em troca de favores e agrados, de quitutes gostosos a farras de indecências com solteiras irreversíveis.

Quase todas as noites – eu sei, porque assistia – Manoel se encontrava com uma rapariga morena e magrela, que vestia saia rodada, coberta de búzios, e usava peruca feita de búzios também. Eles entravam num esconderijo sob o monte de pedras grandes, perto da praia. Lá, trocavam confidências e juras, cheios de paixão, mas nunca chegavam aos carinhos, porque a moça não deixava. Isto fazia com que o português ficasse mais encantado ainda!

Esse chamego começou assim (ele não se cansava de recontar a história): tinha uma cafuza rezadeira, já bem velha e muito sábia nas imediações, que fazia curas, juntava casais, indicava caminhos e outras magias, de nome Jandira. Certa vez, Manoel Jacinto lhe pediu que visse o seu futuro. Não acreditava muito nessas coisas, mas cismou de querer. Foi atendido de pronto, coisa rara, geralmente a senhora respondia com brutalidade a esses pedidos, sempre negando. Gostava de benzer, não de olhar a sorte. Ela o recebeu em sua modesta choupana e assim que fez a primeira reza, disse-lhe: “A mestiça dos búzios vai mudar a vida de vosmecê”. Espantado, ele perguntou insistentemente: “Que mestiça? Que mestiça?”; a benzedeira repetiu por três vezes, sem acrescentar ou tirar nada: “A mestiça dos búzios vai mudar a vida de vosmecê”. O curioso é que depois desse ocorrido, Manoel não conseguiu mais arrancar do pensamento a tal mestiça dos búzios.

Passaram-se alguns dias. Era sexta-feira à noite. Os pescadores faziam uma festa religiosa na praia. O solitário e pensativo português conversava com alguns companheiros, quando avistou a morena vestida de búzios. Ah, então ela existia mesmo! Era nova por ali, ninguém a conhecia. Provavelmente, filha de algum forasteiro recém-chegado. Devia ser devota de uma entidade do mar, pelo tanto de búzios pendurados nas vestes e na cabeça. O encantamento de Manoel Jacinto foi arrebatador e imediato! Que feitiço seria aquele? Aproximou-se, como se hipnotizado e logo se harmonizaram. A partir dali, sucederam-se os encontros que já contei.

Dona Jandira tinha um neto também pescador, chamava-se Damião. Aplicado, era o único dos nativos que aprendia, cada vez com maior desenvoltura, os modos de pescaria do português, que ficava intrigado, pois, conforme já falei, não gostava de passar seus saberes pra ninguém, assim, gratuitamente. Como aquele moço aprendia? Damião era muito calado, não tinha amigos, evitava aproximar-se dos outros. Diziam que era assim porque matou a mãe com seu nascimento e, como explicava a avó curandeira, precisava viver o mais isolado possível, pra pagar tal pecado. Sua pesca era farta, os peixes pululavam em sua rede. Manoel estava preocupado, porque, em seu jeito de pensar, se alguma outra pessoa soubesse tanto quanto ele, correria o risco de perder as regalias, sua importância no lugar. Fazia este desabafo em seus encontros com a mestiça dos búzios, que era muito interessada em seu ofício, em seus conhecimentos e feitos, vantagens e segredos. Aliás, sempre contava tudinho a ela.

Os dias no povoado custavam a passar, havia uma lentidão quase parada nas coisas e um marasmo inevitável incomodava todo mundo. Manoel Jacinto também sofria as consequências daquela pasmaceira. Já se cansava dos encontros com a mestiça dos búzios, sempre precários e limitadores. Foi o que disse a ela: “Não suporto mais manter essa distância de teu rosto, de teu corpo, estando assim, tão perto. Por que não posso tocar-te? Nunca abracei-te, beijei-te, não conheço direito tuas feições, quase não escuto a tua voz! Nem teu nome sei! Pouco falas comigo! Somente falo eu; o que me faz bem, não nego, mas quero mais. Preciso de mais! Quero intimidade contigo!”. Diante do silêncio da amada, ele se aproximou e agarrou-a abruptamente, a ponto de arrancar alguns búzios que a cobriam. A moça tentou contê-lo, mas não conseguiu. Manoel, transtornado, puxou, rasgou, arrebentou sua roupa e depois a beijou à força, tocando seu corpo inteiro com sofreguidão. Foi aí que teve uma enorme surpresa! E-nor-me! Ah, que desconcertante surpresa! Que desatino! A mestiça dos búzios era mestiço! Era Damião! Despido da armação, o rapaz, também muito assustado, contou tudo: “A ideia foi da minha vó, ela sabia que o senhor não ia ensinar a lida da pescaria pra ninguém e nós queria aprender, pra não depender de nenhum explorador, e ganhar dinheiro no povoado, com o aumento na quantidade de peixe pescado e vendendo ferramenta pra manejo nos barcos. Ela achou que eu vestido de mulher misteriosa ia ter mais chance de tirar o saber da boca de sua pessoa. E estava certa; como Damião, aprendi quase nada, mas de mestiça, aprendi tudo. Mas eu fiquei gostando de encontrar com o senhor aqui, de escutar o senhor falar, tinha vontade de contar a verdade, mas não tinha coragem. Fiquei triste porque descobriu nossa armação”. E se recompôs, pra sair. Foi impedido pelo português, que o segurou pelo braço: “Espera! Não sei que mandinga é esta, mas não conseguirei afastar-me de ti. Mesmo sabendo que és um homem como eu, desejo-te, desejo-te ardentemente e sinto que me desejas também. Fica comigo! Ninguém precisa saber! Podemos continuar nossos encontros às escondidas! Posso ensinar-te tudo o que sei e trabalharmos juntos, ganharmos juntos! O que achas?”. O moreno, permanecendo em silêncio, com um beijo, demonstrou assentimento.

O que não sabiam é que um grupo grande de pescadores e suas famílias, cientes dos encontros secretos do português e descontroladamente curiosos, seguiram o casal até o esconderijo entre as pedras e pelas gretas, ouviram e viram tudo. Em poucos minutos, todo o povoado já conhecia a história de amor sodomita de Manoel e Damião e não demorou pra que os moradores tomassem uma decisão drástica: expulsaram os dois e a velha Jandira, depois de tocarem fogo em sua choupana. Ela ameaçou amaldiçoar o local, fazer feitiços contra as famílias dali, uma por uma, e tantos outros horrores, mas de nada adiantou, a repulsa do povo foi maior que seu medo. Sob ofensas, pedradas, escarros e fezes muito fedidas, os pecadores se foram e as coisas voltaram ao normal rapidamente. Os espectadores daquela safadeza evitavam falar e até mesmo lembrar-se do ocorrido, queriam varrer a desonra do lugar, sentiam-se imundos por terem simplesmente presenciado tamanho absurdo. Eram tão puros! Tão bons! Tão justos! Não mereciam testemunhar tanta vergonha! Não mereciam um castigo tão grande! Porém, o caso da armação dos búzios espalhou-se mais do que devia e acabou tornando-se a denominação do lugarejo. Aí, tiveram a ideia de inventar outras versões que justificassem o seu porquê.

É isso: as explicações mais famosas sobre a origem do nome desta cidade são erradas. E apenas eu conheço a verdade. Apenas eu! Os que também a conheciam já morreram há século. Sou grossa, comprida e achatada; então, o casal me usava pra tapar a entrada do esconderijo, como se fosse uma porta. Assim, eu assistia aos encontros, mas não posso contar a ninguém. Embora enxergue por todos os lados, não tenho voz. É duro ser pedra.

Marco Aurelio Vieira
Enviado por Marco Aurelio Vieira em 11/08/2013
Código do texto: T4429180
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